quarta-feira, 20 de novembro de 2019


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"Milkman", de Anna Burns: Literatura esclarecedora e estimulante, em tempos de Brexit

18.11.2019 às 14h00
Na grande e boa tradição da literatura irlandesa, um poderoso romance sobre o que une e divide, da política ao boato. Milkman, de Anna Burns, já está à venda nas livrarias
Luís Ricardo Duarte
Jornalista
David Levenson / Getty Images
Para quem, ouvindo as notícias, se pergunta por que razão é tão difícil chegar a uma solução para o problema da fronteira na Irlanda do Norte, elemento crucial no Brexit em curso (o designado “backstop”), o terceiro romance de Anna Burns é seguramente uma das leituras mais esclarecedoras e estimulantes. E esse é um dos muitos méritos de Milkman, que no ano passado recebeu o prestigiado (e muito mediático) Man Booker Prize. A par de um aprumado trabalho literário e de linguagem, dá-nos o retrato interior de uma sociedade.
Não são precisos nomes nem datas para situar esta narrativa num dos períodos mais conturbados da História recente da Irlanda do Norte, que ninguém quer reavivar. Estamos no conflito que, entre 1968 e 1998 (Burns nasceu em 1962), opôs nacionalistas e unionistas, protestantes e católicos. Se a política dividia fações, de uma forma quase irreconciliável, a religião impunha regras e costumes. Ser diferente era uma opção que cada um tomava por sua conta e risco. Como a narradora de Milkman. Ela tem 18 anos, gosta de ler na rua e de viver noutros séculos que a literatura lhe oferece. Não pensa em casar-se nem em constituir família. E isso já é suspeita suficiente. Mas um boato vem escurecer ainda mais a sua reputação: um tal de “leiteiro” (o milkman do título inglês), muito mais velho e paramilitar antigoverno, é visto ao seu lado. Uma, duas, três, mais vezes. Toda a gente fala disso.
Com tais ingredientes, este é um romance sobre perceções e equívocos. Na grande e boa tradição literária irlandesa, que explora o fluxo de consciência, Burns conduz-nos pelos pensamentos de uma jovem que se recusa a aceitar o que parece obrigatório. A narrativa avança pouco e nada parece acontecer. Mas o rumor instala-se, e cada gesto evoca uma torrente de acontecimentos, conflitos e divisões. Denso e sedutor, torrencial e arrebatador, Milkman é o grande romance sobre o desconhecido. Aquele que mora lá longe, ou mesmo ao nosso lado.
Além do Man Booker, o mais recente romance de Anna Burns, Milkman (Porto Editora, 284 págs., €18,80) recebeu, no Reino Unido, os prémios National Book Critics Circle e Orwell para ficção política.


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