segunda-feira, 18 de novembro de 2019

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Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen. A amizade, a obra e a vida numa conversa para ouvir em cartas e versos
JORGE DE SENA E SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN. A AMIZADE, A OBRA E A VIDA NUMA CONVERSA PARA OUVIR EM CARTAS E VERSOS
Alexandra Antunes
Pedro Soares Botelho
Paulo Rascão
Pedro Marques dos Santos

6 nov 2019
Eles escreveram, eles foram e são lidos. São estudados, são citados. Eles celebram o seu centenário entre estes primeiros dias do mês de novembro — assim, no presente, porque é preciso resistir “um pouco mais à morte que é de todos e virá” e, mesmo que se morra, “o poema encontrará uma praia onde quebrar suas ondas”. Eles são Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen e aqui contam-se as suas histórias, as suas conversas, recorrendo também às palavras escritas pelos próprios, que a vida é melhor em cartas e versos.
[Para ouvir a leitura dos excertos dos poemas e cartas, carregue sobre as partes sombreadas do texto]
Ouvir — Sophia:
A respiração de Novembro verde e fria
Incha os cedros azuis e as trepadeiras
E o vento inquieta com longínquos desastres.
A folhagem cerrada das roseiras
Novembro de 1919. Apenas quatro dias separaram os nascimentos de Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, que viriam a crescer poetas — e poetas amigos, próximos, que se entendiam apesar dos quilómetros que viriam a separá-los.
Ele nasceu em Lisboa, no dia 2; ela no Porto, no dia 6. E se não se escolhe quando nem onde se nasce, escolhe-se o que se faz depois. Considerados dois dos maiores poetas portugueses do século XX, mantiveram em vida uma profunda amizade que ficou registada, entre outros escritos, na correspondência regular, desde o final dos anos 1950, após o exílio de Sena, e que constitui não só uma obra da literatura e da estética, como um retrato da época, até aos anos 1970.
A edição das cartas só foi possível porque Jorge de Sena guardava toda a correspondência — a que recebia e a que enviava; já Sofia desfez-se de tudo. Quando se escreviam, partilhavam vidas e construíam o futuro da poesia portuguesa sem se darem conta.
Após a morte do escritor, foi a sua mulher, Mécia de Sena, que avançou com a publicação. “Tinha eu combinado com a Sophia que juntaríamos estas cartas pensando eu em publicá-las quando assim o entendêssemos. Mas encontrei dificuldades e não só naquelas que inicialmente me foram impostas pela PIDE, até que agora, finalmente, graças a outro amigo persistente, se resolveram”, lê-se na nota prévia do livro.
Ouvir — Sophia:
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Maria Andresen de Sousa Tavares, uma das filhas da escritora, escreveu também uma nota à edição, que justifica este agregar de cartas. “Não foi sem hesitação que me dispus a colaborar na publicação desta correspondência. Eu não a conhecia. A minha mãe não guardou as cartas que de muitos lados foi recebendo, nem os rascunhos das que foi enviando (em geral bem poucas). Mas Jorge de Sena, como se sabe, guardava e arquivava umas e outras”.
A própria Sophia confirma o pouco que produziu no género epistolar numa carta escrita em Lisboa, endereçada a Jorge de Sena, datada de 1960.
Ouvir — Sophia:
Desculpe o longo silêncio: você sabe que eu tenho a maior vocação para falar ao telefone e nenhuma vocação para escrever cartas.
Aliás ando terrivelmente dispersa sem conjugar ideias.
Alexandra Antunes | MadreMedia

As “conversas a dois” — por vezes estendidas às respetivas famílias — mostram “uma amizade apaixonadamente crente no seu próprio valor e, como tal, incondicionalmente fiel a si mesma. E essa fidelidade permitiu-lhe prevalecer, resistir a tanto tempo, tanta ausência, tantos obstáculos e chegar, nessa pureza, até à morte. Que algumas amizades prevaleçam para além de tudo é uma espécie de luz, talvez a pequenina luz bruxuleante”.
Ouvir — Jorge:
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
Apagando a distância, Sena e Sophia falaram de tudo um pouco. Mas é notória a discussão em torno das suas obras e dos percursos criativos de cada um. Pelo meio das cartas surgiam, então, pedaços de poesia. O que um escreveu em jeito de rabisco, o que está prestes a ser publicado — nos Cadernos de Poesia ou na Távola Redonda, por exemplo — mas que se quer que seja lido primeiro por quem está longe, e os exemplares do que já viu a luz do dia.
Ouvir — Jorge:
A Sophia de Mello Breyner Andresen enviando-lhe um exemplar de “Pedra Filosofal”
Filhos e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais?
As opiniões não eram escondidas. Elogiava-se, viviam-se as palavras partilhadas. Tudo era dito, de forma direta, para que o outro pudesse melhorar o que tinha escrito, fosse esse o caso, ou apenas para saber que tinha atingido o topo. Sobre poesia, sobre contos, sobre tudo.
Ouvir — Sophia:
Lisboa, 20 de março de 1961
Caríssimo Jorge,
Muito obrigada pela Poesia e pelas Andanças do Demónio.
A sua poesia reunida vê-se melhor. O livro deu-me uma extraordinária impressão de grandeza. Uma grandeza que é estilo, precisão, exactidão, força, construção e mais ainda testemunho, olhar olhando de frente, inteireza, coragem.
(…)
Obrigada também pelo seu livro de contos. O conto que prefiro é o Atlântico que tem um ambiente extraordinário em que se toca o navio, o mar, os homens, a vastidão do mundo, que vivem espantosamente para além da história que é contada. Você cria um momento suspenso no meio do tempo, no meio da noite, no meio do mar.
Do primeiro conto, que tem coisas óptimas, penso que você não desenvolveu o tema completamente.
Não compreendo muito bem o sentido do segundo conto. Em versos eu não preciso de compreender, mas em prosa preciso. E neste seu conto não consegui entender mais do que a imagem do mar e da solidão. Não compreendi o que era aquele peixe.
(…)
Para si e para a Mécia um grande abraço da muito amiga
Sophia
As respostas para a crítica, por sua vez, nem sempre chegavam. Mas, com o passar o tempo, Sophia e Sena aprenderam a fintar as dificuldade do país que foi sempre deles — mesmo quando lá não estavam — , bem como as páginas em branco para as cartas devido à enxurrada de letras para a obra.
Ouvir — Jorge:
Araraquara, São Paulo,
20 de dezembro de 1962
Caríssima Sophia,
Perdoe-me, se pode, o meu silêncio. Mas eu já não sei que fazer para aguentar o trabalho incrível que é e cada vez mais vai sendo o meu. Todos os dias penso nas cartas que preciso de escrever àqueles que estão sempre presentes no meu coração; e todos os dias sucumbo ao peso das urgências atropeladas de tudo o que tenho aceitado fazer.
(…)
Não foi, pois, por desinteresse que tenho estado calado, mas por humana impossibilidade. Espero que esta carta lhe chegue às mãos e se lhe demore nelas. Nunca imaginei que a P[IDE]. se tentasse com os meus autógrafos… Resta-nos a consolação de pensarmos que ficaram sabendo o que já sabiam ou o que até bom seria que soubessem.
(…)
E creia na dedicação e na amizade do sempre seu
Jorge

Alexandra Antunes | MadreMedia
Jorge de Sena contou, numa entrevista em julho de 1972, o processo que o levou a isto de “ser poeta”. “Escrevi sempre sem ter consciência disso, quando era criança. E por volta de quando tinha 16 anos comecei a escrever conscientemente de que escrevia”, explica.
“Eu mostrava alguns desses meus poemas a alguns colegas, primeiro de liceu e depois da faculdade, e havia um par de amigos que tinham a paciência, coitados, de ouvir tudo aquilo que eu mostrava. Uma das coisas que mais influência teve na forma como eu me tornei independente na forma como escrevo foi a estreiteza de um dos meus colegas, que tinha a convicção de ser um dos homens mais inteligentes do mundo — sempre teve, coitado — e que era de facto muito inteligente, mas que não percebia nada de poesia moderna e que constantemente insistia que aquilo que eu escrevia não era poesia”.
Por sua vez, Sophia de Mello Breyner Andresen tem um momento exato para esta revelação, referida no prefácio de Obra Poética. “Comecei a escrever numa noite de Primavera, uma incrível noite de vento leste e Junho. Nela o fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter — nem podia desfazer-me em noite, fundir-me na noite”.
São essas noites de ‘vento de leste que não traz nada que preste’ que marcam a sua obra, dando a poeta relevo aos momentos em que a governanta “queimava alecrim, acendia uma vela e rezava” por quem andava no mar. “De certa forma nessas noites de temporal nasceram muitas coisas. Inclusivamente, uma certa preocupação social e humana ou a minha primeira consciência da dureza da vida dos outros, porque essa governanta dizia: ‘Agora andam os pescadores no mar, vamos rezar para que eles cheguem a terra’. E essa sensação dos homens, nos barcos, a lutar contra uma tempestade de que os ecos… Batiam as janelas, as portadas de madeira”.
O mar. O mar que foi de Sena e Sophia por diferentes motivos. O mar que os dois escreveram.
Para ele, enquanto filho único de um pai comandante da marinha mercante, que colocou nele todas as expectativas de ter em casa um futuro oficial da Armada —, mas que as viu goradas quando este ingressa na Escola Naval e, na viagem de instrução no navio-escola Sagres, é expulso da Marinha.
Para ela, o mar que começou com o avô Jan Andresen, que veio da Dinamarca e desembarcou um dia no Porto para nunca mais de lá sair; o mesmo avô que lhe lia poemas quando era criança. O mar que vinha até ela na Nau Catrineta que recitava de cor aos três anos, o mar pelo qual se apaixonou a olhar o Atlântico na Praia da Granja, em Gaia.
Ouvir — Sophia:
Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
Ouvir — Jorge:
Conheço o sal que resta em minha mãos.
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
O mar que é vida, o mar que é morte. Nesta semana, em que se celebram os 100 anos do nascimento dos dois poetas, recorda-se tudo isto. O que se foi, o que se é, o que se virá a ser através das palavras de Sena e Sophia. No poema Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena, o poeta escreve que é preciso resistir “um pouco mais à morte que é de todos e virá”. E é para isso mesmo que serve a poesia porque, como escreveu Sophia, “o poema encontrará uma praia onde quebrar suas ondas”, chegando sempre a alguém. Que não seja a morte o motivo que nos leva a esquecer os que nasceram para nos escrever.
Ouvir — Jorge:
Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.
Ouvir — Sophia:
Que a morte será simples como ir
Do interior de casa para a rua.

Poemas no corpo do texto, por ordem:
Novembro, Sophia de Mello Breyner Andresen
Porque, Sophia de Mello Breyer Andresen
Uma pequenina luz, Jorge de Sena
Mar, Sophia de Mello Breyner Andresen
Conheço o sal, Jorge de Sena
Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, Jorge de Sena
O Poema, Sophia de Mello Breyner Andresen
Independência, Jorge de Sena
Sinto os mortos, Sophia de Mello Breyner Andresen
Agradecimentos:
J. Filipe Ressurreição (nos poemas e carta de Jorge de Sena)
Carina Lopes (nos poemas e carta de Sophia de Mello Breyner Andresen)
João Couraceiro (áudio)
Editora Guerra e Paz


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