terça-feira, 8 de outubro de 2019

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José Saramago: "O que me vale, caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos!"
25.10.2009 às 22h12
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Em torno do livro "Caim", o Expresso juntou José Saramago e o teólogo católico José Tolentino de Mendonça. Um, de 87 anos, Nobel da Literatura, "ateu empedrenido", como gosta de se apresentar. Outro, de 43, sacerdote e poeta, professor da Universidade Católica. O frente-a-frente foi vivo e aceso.
JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA (WWW.EXPRESSO.PT)
José Saramago (JS) - Eu chamei "livro dos disparates" não à Bíblia, mas a um versículo de uma carta aos hebreus, que está na contracapa e que também serve de epígrafe ao livro. Em toda a Bíblia, depois do assassinato de Abel, não se volta a falar de Caim. Não se sabe porquê, nessa carta aos hebreus há uma referência a Caim e que é completamente absurda e que me permiti chamar-lhe disparate. "Pela fé" - só estas duas palavras dariam para uma larga discussão. "Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo, etc..". Há alguém capaz de me explicar, em termos racionais e humanos, para que a gente entenda, o que isto quer dizer? É absolutamente incrível!
José Tolentino de Mendonça (JTM)- A tradição, durante séculos, colocou-a no interior das cartas paulinas. Sabe-se, agora, que é de um autor posterior a São Paulo, embora seja um texto do Novo Testamento e com uma teologia admirável.
JS - A teologia admirável atreveu-se a dizer coisas tão impossíveis de aceitar como afirmar que Deus considerou Abel seu amigo. O que é isto? Estamos a jogar com as palavras? Como é que sabemos isso? Quem é que registou? Quando? Como? Onde? Abel e Caim sacrificaram a Deus o que tinham. O pobre Caim, se me permitem que chame pobre a um assassino, ofereceu também o que tinha. Deus desprezou o sacrifício de Caim. Aí, começa tudo: o ciúme nasceu aí, o rancor, a incompreensão, porque Caim não percebe que Deus o rejeite. Isto é um disparate lógico, o que me leva a dizer que este texto faria boa figura num livro de disparates. Mas não chamo à Bíblia um livro de disparates.
JTM - Não encaro esta conversa como um duelo ou sequer como um confronto. Este é um território onde a humildade é extraordinariamente necessária. No fundo, o não-crente e o crente têm ambos as mãos vazias, ainda que de forma diferente. Ambos são buscadores, procuradores. A fé nasce de uma interrogação, de uma abertura à revelação de Deus e do irmão. Tenho o maior apreço pela pessoa de José Saramago e pelo seu trabalho. Um grande criador é um dom extraordinário. E todos, de alguma forma, somos devedores a essa arte humaníssima, artesanal, extraordinariamente solitária e funda, que é a arte de um contador de histórias, de um escritor. Tenho o maior respeito, também, pelo interesse que José Saramago manifesta pelo texto bíblico. É, sem dúvida, dos autores portugueses, dos que mais se interessa, mais convive e mais procura o texto bíblico. Às vezes de uma forma consciente, num confronto e numa luta corpo-a-corpo, como no caso do "Evangelho Segundo Jesus Cristo", ou, agora, em "Caim", onde há luta forte com o texto bíblico. Outras vezes de forma implícita. E às vezes num certo tom, no seu português maravilhoso e inesquecível, que até tem um tom e uma respiração bíblicas, no sentido de um certo tom cosmogónico que, por vezes, a sua narrativa tem.
Há duas coisas que é preciso distinguir. Uma, é a obra literária, que agora foi lançada; outra, é o hipertexto: aquelas declarações de José Saramago em Penafiel, no lançamento do livro, e que acabaram por criar um acontecimento mediático. Sobre isso, algumas pessoas da Igreja e de outras confissões religiosas manifestaram-se, com toda a legitimidade, porque vivemos numa sociedade aberta e de liberdade. São leituras de uma declaração muito virulenta de José Saramago em relação à Bíblia e ao fenómeno religioso. Foi uma declaração nada consensual, e por isso são mais que expectáveis as reacções. Atacar a Bíblia desta maneira, tratá-la como uma coisa que podemos dispensar, e as palavras, com a gravidade com que foram ditas, é alguma coisa que nos enche de perplexidade. Porque a Bíblia é um livro de fé. É inegável que ao longo de séculos tem sido uma fonte de bem, uma fonte de ânimo na aventura humana e uma fonte de criatividade espantosa. A Bíblia é também um grande código da nossa civilização. Claro que podemos criticar esse código, mas um grande homem de cultura, mesmo agnóstico ou ateu, por amor a Bach, por amor a Mozart, a John Steinbeck, a O'Connor, a Faulkner, a Ruy Belo, a Maria Gabriela Llansol, a José Saramago, tem de ter este livro em sua casa.
JS - Eu não preciso de ter, porque em minha casa tenho sete ou oito exemplares. Desde uma Bíblia espanhola do século XVII ou XVIII, até uma Bíblia que me foi oferecida numa Feira do Livro, há três ou quatro anos, em português corrente. Até posso estar de acordo consigo quando diz que na minha prosa e estilo há uma ressonância, uma música que pode ser relacionado com a música, o ritmo, o sentido da pausa, o sentido expositivo, que se encontra na Bíblia. Não nego. Outra das minhas grandes influências, já o disse, é o padre António Vieira, cujos sermões li e reli - algumas vezes terei treslido... Mas acho que terá sido necessário um grande esforço para converter a Bíblia num livro de fé.
JTM - Mas a Bíblia é uma biblioteca. Tem muitos livros. Acha que foi difícil tornar um livro de fé o livro do profeta Isaías?
JS - Não! Como não acho impossível o livro de Job.
JTM - Ou os Salmos. Ou os Livros da Sabedoria ou das Origens.
JS - Tudo isso é certo. Mas ponha-se agora, por um ou dois minutos, no meu lugar. Tomar o Caim como personagem central de uma história não tem nada de gratuito. A questão do Caim é uma velha questão que eu tenho com a Bíblia.
JTM - Mas leu alguns comentários sobre a figura de Caim? Para mim, como exegeta, um dos textos mais admiráveis sobre Caim é o texto de Paul Ricoeur, que faz uma interpretação que, penso, o próprio Saramago achará extraordinária. Ele lê o episódio de Abel e Caim como a história e a construção da fraternidade. O Génesis é uma meditação sapiencial sobre a condição humana. O que são, afinal, os mitos? São meditações sobre a vida. Os autores bíblicos são contadores de histórias, que repassam a vida com um olhar crente, se quisermos. Depois da Bíblia, a fraternidade já não está dependente dos laços do sangue, mas de uma decisão ética. Eu não sou irmão do outro simplesmente porque sou do seu sangue; sou irmão dele se escolher ser seu irmão.
JS - Isso é forçar um pouco as histórias... O que teria acontecido se Deus tivesse aceite o sacrifício de Caim, como aceitou o de Abel? Porque é que Deus recusou o sacrifício de Caim? Esta pergunta não tem resposta.
JTM - As grandes experiências humanas são experiências de escolha com a qual temos de lidar. Veja: porque ama a Pilar e não uma outra mulher?
JS - Eu cá sei!
JTM - Sabe, mas o amor é um lugar sem resposta, sem lógica.
JS - A literatura e a lógica não são incompatíveis!
JTM - Não são incompatíveis, mas não é uma lógica matemática.
JS - É absurdo que Deus tenha recusado o sacrifício de Caim. Não há palavras, não há exegeses ou leituras simbólicas que o justifiquem. Temos aí um obstáculo sério: é que não podemos fazer perguntas aos redactores da Bíblia. Gostaria de saber quais eram as intenções do autor.
JTM - Mas há um sentido imanente no texto.
JS - A Bíblia está traduzida em quase todas as línguas.
JTM - Mas a exegese é feita sobre os textos originais. Eu trabalho sobre o hebraico e sobre o grego.
JS - Textos originais sobre os quais eu não sei nada.
JTM - Não sabe porque não tem investigado.
JS - Não! Simplesmente porque a minha vida é outra.
JTM - Todo o texto bíblico tem em si um densidade inesgotável. É um livro que nunca se acaba de ler. Depois de mil leituras, o texto vence sempre. Este texto é muito importante. Como a carta aos hebreus, que acho injusto que lhe chame "livro dos disparates".
JS - Tenha paciência: eu não lhe chamei isso. O que eu digo, e repito, é que este texto concreto, tal como está redigido, merecia ser incluído num livro dos disparates universais. Esta frase, qualquer pessoa achará que é uma frase completamente disparatada.
JTM - Mas a fé é um paradoxo. Eu não diria um disparate. Querer tratar Deus com lógica é chegar a um beco sem saída.
JS - Então se o beco não tem saída, voltemos para trás.
JTM - Mas acha que pode entender a condição humana eliminando o paradoxo?
JS - Não, não.
JTM - Acha que as grandes emoções, as grandes janelas interiores que o homem traz se justificam apenas pela lógica?
JS - Mas os meus livros estão cheios disso. A questão é que eu não escrevi nenhum livro sagrado! Esse é o problema.
JTM - Sabe que numa sociedade secularizada o José Saramago é uma espécie de referência sagrada. Um homem que vende 200 mil exemplares e tem uma cobertura global... Hoje, o sagrado tem outras formas. E, no fundo, a sua pretensão é também uma pretensão sagrada.
JS - É possível. Aliás, uma das minhas frases preferidas é que "para fazer um ateu como eu, é necessário um altíssimo grau de religiosidade".
JTM - Sem dúvida!
JS - Como é uma frase minha, o que o teólogo Juan José Tamayo escreveu recentemente no diário "El País": "Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio". Eu não sou o tipo de ateu ferrabrás, armado de um chuço para deitar abaixo aquilo que eu não posso deitar abaixo, que é a crença, a fé, na qual eu não toco - na condição que não façam afirmações tão ilógicas como esta.
JTM - Mas podíamos tirar qualquer afirmação de um dos seus livros e colocá-la no livro dos paradoxos universais.
JS - Não me importaria nada. Mas ficaria muito desgostoso se incluíssem uma frase minha no livro dos disparates. A Igreja insiste em que há que fazer uma leitura simbólica dos textos bíblicos. Os crentes e leitores da Bíblia estão instruídos, educados, treinados, manipulados para aceitar aquilo que...
JTM - Porque diz manipulados?
JS - Porque é assim. A palavra é essa. Quer outra palavra? Eu dou-lha.
JTM - É muito importante perceber que os cristãos são criados por liberdade, por amor à liberdade.
JS - À liberdade? Mas o que é que a história da Igreja, e do catolicismo em particular, tem que ver com a liberdade?
JTM - Tem tudo a ver com a liberdade.
JS - Ai sim? Curioso!
JTM - Foi para a liberdade que Cristo nos libertou, afirmou um homem como Paulo de Tarso.
JS - Deixe Cristo em paz!
JTM - Mas esse é o seu erro de base. Deixe-me falar, para voltar à história de Caim e Abel. A Bíblia, precisamente para ilustrar a liberdade, coloca a escolha dos filhos mais novos - Abel, mas também uma galeria imensa de filhos mais novos, que são os preferidos em relação ao poder estabelecido socialmente pelo mais velho. Todo o direito e a lei estão do lado do mais velho. E, contudo, Deus escolhe o mais pequeno. Deus escolhe o último, a vítima, aquele que não tem voz nem vez, o que não é protagonista da História, para ser protagonista de uma história. Tudo isto é uma convulsão social. A Bíblia é um texto inquieto. Se escrutarmos a Bíblia a partir de um raciocínio lógico, claro que vamos encontrar imensos nós cegos, coisas sem resposta. Mas a nossa vida é assim. A história de Abel e Caim é a história desta inquietação sem resposta que a experiência do mal e do bem é na nossa vida. Não é verdade que na Bíblia nunca mais se volte a falar de Abel. Jesus identifica-se muito com a figura de Abel. A Bíblia identifica-se com a figura daqueles que na história são as vítimas. Por isso, dizer que a Bíblia é uma espécie de livro que reúne toda a crueldade do mundo, é dizer uma coisa ao lado do que verdadeiramente é. No seu espírito profundo, a Bíblia é um manual de liberdade, um livro de perguntas. Por muito que lhe custe, José Saramago, quero dizer-lhe que o cristianismo é uma aventura de liberdade.
JS - A mim, o que me vale, meu caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos.
JTM - Não vamos falar das fogueiras, porque infelizmente o fumo das fogueiras enche a história de todos os tempos. Nós estamos aqui, dois homens, a falar no século XXI. E é com a verdade do que vivemos e fazemos que nos temos de encontrar. Aqueles que pensam que são isentos do mal é que me metem medo!
JS - O cristianismo uma aventura de liberdade!? Dizer isso com os albigenses, as cruzadas, o santo ofício, as masmorras da inquisição, as fogueiras a arder e tudo isso...
JTM - Esquece que no tempo da Inquisição havia santos. Nos tempos dos albigenses e das masmorras não deixou o cristianismo de ser uma história de liberdade e humanidade. Você tem uma visão parcial do cristianismo!
JS - Não tenho.
JTM - Como leu o facto do papa João Paulo II ter pedido perdão...
JS - Não sou leitor do papa João Paulo II!
JTM - Não, mas soube, concerteza. Não pode escapar a esta questão. Porque lhe custa reconhecer que um Papa pode ter um gesto humanamente admirável? Porque lhe custa? Não cai do pedestal.
JS - Pontualmente não me custará nada reconhecer algo que de bom, de perfeito, de belo, Papa A, B, C ou D tenha feito.
JTM - Mas então diga o que achou do Papa João Paulo II ter pedido perdão pelos crimes e erros do passado, feitos em nome do cristianismo e da fé? O que acha desse gesto?
JS - Até agora, que eu saiba, deixaram no rol do esquecimento, por exemplo, uma figura como o Giordano Bruno. Porquê? Perdoou mais ou menos a Galileu. Mas Giordano Bruno foi levado à fogueira com um pedaço de madeira fixado na boca.
JTM - Mas o Giordano Bruno era um crente!
JS - É isso que a Igreja não suporta: quer crentes, sim, mas disciplinados.
JTM - Não é verdade. Dentro do Cristianismo, há muitos cristianismos.
JS - O rebanho que vai a Fátima é o que a Igreja quer!
JTM - Não sejamos generalistas, porque entre os milhares de pessoas que vão a Fátima há-de haver quem vá com um espírito de sinceridade e liberdade que nós nunca teremos. Não julguemos!
JS - Não perca tempo a dizer isso, porque eu sei que isso é assim, e respeito a crença e a fé.
JTM - A fé dos simples.
JS - Eu não toco nisso. O meu objectivo é outro: a Igreja como instituição de domínio, como poder, como castradora de algumas das virtudes naturais do homem.
JTM - Mas essa é uma posição, um olhar demasiado ideológico. A igreja não é assim!
JS - Mas porquê demasiado ideológico? Eu sou o único que tem ideologia? Você não tem?
JTM - Tenho! Tenho a ideologia e a pretensão cristã.
JS - Então por que se fala da minha?
JTM - Eu não o acuso de dominador ou de senhor do mundo.
JS - Mas eu também não o acuso a si. Mas posso acusar a instituição a que pertence.
JTM - Mas em que bases?
JS - A história do papado é algo de terrível, de simplesmente tenebroso. E você sabe-o perfeitamente.
JTM - O terrível da história, a experiência do mal e da ferida, está em todas as vidas. Não há nenhuma isenta. Não há vidas e instituições que não tenham sombra. Essa ideia que é preciso um manipulador por trás para se entender a Bíblia é uma ideia peregrina.
JS - Quando o manipulador não está imediatamente por trás, está um pouco mais atrás e mais atrás - mas está lá. Garanto que está.
JTM - Mas donde lhe vem essa desconfiança?
JS - Da história, da realidade, dos factos. Não lhe parece que vivemos numa sociedade altamente manipulada?
JTM - Eu acho que sim e que um espaço de liberdade é precisamente a complexidade dos textos fundadores, entre os quais se conta a Bíblia, que é um manifesto contra esta sociedade da manipulação.
JS - Mas ajudou muito.
JTM - As ajudas podem ser involuntárias. Não podemos culpar a Bíblia das leituras erróneas.
JS - Mas que ideia é a vossa de que eu culpo a Bíblia!?
JTM - São palavras suas! Voltou a ler as palavras que disse em Penafiel?
JS - Eu tenho um livro na mão, e é um livro cheio de violência, de carnificinas, incestos. Um manual de...
JTM - Mas toda a literatura é isso. Podemos dizer isso das obras completas de Shakespeare, ou das obras completas de Saramago.
JS - E o que é que eu resolvo com essa justificação?
JTM - A vida é literatura e a Bíblia usa aquilo que é próprio da literatura para fazer uma leitura crente da condição humana. Porque poucos lugares há, para além da literatura, capazes de espelhar a condição humana na sua inteireza. A Bíblia não é um código de direito, nem um livro de lógica.
JS - Mas foi-o. E sem esquecer o Deuterónimo!
JTM - Eu não percebo esse seu... Há um poema da Adília Lopes que dia que "a literatura não é um ajuste de contas, é um ajuste de cantos".
JS - Desculpe: esse verso é muito interessante, mas é um simples jogo de palavras.
JTM - Acha que a poesia é um simples jogo de palavras?
JS - Não torça aquilo que eu disse.
JTM - Estes versos são só um jogo de palavras?
JS - Não lhe permito que tire essa conclusão. O dístico que acabou de citar é um jogo de palavras. Que nós, escritores, fazemos muito, e muitas vezes com a má consciência de que não significa grande coisa, mas que soa bem e é bonito. Há pouco, disse que Deus está do lado da vítima. Efectivamente, Abel é uma vítima do irmão. E Caim, não é vítima de ninguém?
JTM - Todos somos vítimas.
JS - Que nós, simples humanos, sejamos vítimas e carrascos uns dos outros, muito bem. Agora, que Caim seja vítima de Deus, não há lógica no mundo, nem exegese, que o justifique.
JTM - Porque diz que Caim é vítima de Deus e não compreende que é uma leitura sapiencial que o livro do Génesis faz?
JS - O que é isso de uma leitura sapiencial?
JTM - A Bíblia é um teatro de Deus, uma reflexão sobre Deus.
JS - Um teatro de Deus? O que é que vocês sabem de Deus?
JTM - Nós sabemos de Deus o que Jesus de Nazaré nos revelou acerca de Deus!
JS - Não misturemos alhos com bugalhos. Não vale a pena! Repare nisto: antes da criação do universo, Deus, que se saiba, não fez nada. Não consta. Chegou um momento em que, não se sabe nem porquê nem para quê, decide formar o universo.
JTM - O mistério aflige-o sempre...
JS - Limito-me a verificar. Construiu um universo. Coisa que, durante muito tempo, pareceu relativamente fácil, mas a partir de Darwin já não é tão fácil - e com as novas descobertas científicas... Depois, ao sétimo dia, descansou e continuou a descansar até hoje - não teve mais participação.
JTM - Não é a opinião de milhões de seres humanos ao longo de gerações. Porque não é sensível à experiência que os outros vivem?
JS - Não! Eu, às vezes, digo que deus e o diabo só têm um lugar onde habitar: é na cabeça humana. Não há outro lugar em parte nenhuma do universo onde eles possam estar. Estão na nossa cabeça. Até mesmo na minha cabeça.
JTM - Essa é uma visão sua.
JS - Minha?
JTM - O que é estranho é o seu desejo de excluir a Bíblia, de fazer de contas que ela não existe.
JS - Como pode dizer isso a mim, que escrevi o "Evangelho Segundo Jesus Cristo" e, agora, o "Caim"? Eu sou aquele que diz que, embora seja ateu, estou empapado de valores cristãos.
JTM - Isso é muito bonito - e verdadeiro!
JS - Já o disse e repito-o em qualquer lugar. Mas isso não me impede de fazer juízos críticos sobre a religião.
JTM - No entanto, as suas entrevistas redundam facilmente numa caricatura. O que choca, por vezes, na sua linguagem, é o lado caricatural.
JS - Perdão: vocês merecem, tal como qualquer instituição, serem caricaturados. Vocês não estão acima da caricatura.
JTM - Nós não estamos, nem o José Saramago está.
JS - De acordo.
JTM - Mas é que, hoje, você tem muito mais força...
JS - Que a Igreja Católica?
JTM - Não! Isso não sei se é a sua ambição - mas não é a realidade. É preciso ver que a sua palavra tem uma responsabilidade social e civilizacional.
JS - Assumo-o totalmente.
JTM - Quando um homem de cultura diz que a Bíblia é um livro de crueldade, penso que isto, em termos civilizacionais, é um erro.
JS - É a sua opinião, não é a minha.
JTM - É um erro porque põe em xeque algumas das obras mais belas e extraordinárias que a nossa tradição cultural nos legou.
JS - Escute uma coisa: eu nunca neguei que a Bíblia é tudo isso que se diz dela. Claro que é.
JTM - Então diga alguma coisa bela da Bíblia. Fale com o coração!
JS - É quase uma simples questão estatística: milhões de exemplares da Bíblia lidos, estudados, aprendidos, decorados, em todo o mundo.
JTM - Ainda esta semana saiu mais uma tradução da Bíblia para português.
JS - Já tínhamos tantas! Porquê mais uma?
JTM - Dizer isso não parece uma coisa digna de si.
JS - Estou na brincadeira, homem!
JTM - Pois é! Está a ver? É que diz as coisas em tom jocoso, mas elas têm um alcance que não é justo. Você não pode dizer isso!
JS - O que me valeu foi ter escrito este livro donde a jocosidade não está ausente. Já o leu até ao fim?
JTM - Evidentemente que sim.
JS - Até ao dilúvio?
JTM - Até ao dilúvio e até a uma frase terrível com que o livro acaba, que é talvez uma das frases mais terríveis da literatura portuguesa: "A história acabou, não haverá nada mais que contar". Dá muito que pensar deste fecho definitivo da história. O exercício que faz, em si, é mais que legítimo. Mas a grande questão é que aquilo que diz, muitas vezes, é marcado por um exercício de intolerância.
JS - Eu, intolerante? Eu?
JTM - Todos podemos ser intolerantes. O José Saramago porque não pode ser intolerante? Todos podemos ser e todos certamente o somos.
JS - Se lhe quiser chamar radicalismo, aceito. Mas não intolerância. Não sou intolerante.
JTM - Aquelas declarações de Penafiel são declarações de intolerância.
JS - Não são nada!
JTM - Diz o José Saramago. É um manifesto de intolerância do ponto de vista cívico.
JS - Não é certo que o livro está cheio de crueldades? Que não lhe faltam incestos? Que tem isso e muito mais, e carnificinas de todo o tipo?
JTM - E acha que a Bíblia é só isso? Acha que descrevendo isso se descreve o que é a Bíblia? Acha que esquecendo tudo aquilo que a Bíblia é, que é também a sua natureza de milagre, está a ser tolerante? De que parábola é que gosta mais, das que Jesus contou?
JS - Talvez a do semeador. A semente que cai na pedra...
JTM - A Simone Weil dizia que entre dois homens que estão a discutir, um que crê e outro que não crê, o que não crê está mais perto de Deus do que aquele que crê.
JS - Oh diabo! Oh diabo!
JTM - Por isso é que o discurso cristão nunca pode ser um discurso de exclusão. Dizer que o cristianismo é sobretudo uma aventura de liberdade é para levar muito a sério. Ver o cristianismo do ponto de vista do poder, da força, da imposição, é um olhar possível, mas não faz justiça à radicalidade humana que o cristianismo foi semeando. Se quisermos fazer justiça à história, temos que perceber que o cristianismo está do lado dos heterodoxos, dos insubmissos, dos mártires, das vítimas, daqueles que não têm voz.
JS - Mas no que toca a vítimas, o cristianismo contribuiu com uma quota importante, não?
JTM - E chora e arrepende-se de todo o mal que fez.
JS - Desculpe, Tolentino, mas não demos por isso. Aqui, pelo menos, não chegou uma palavra que signifique isso. O que está a dizer são palavras de ouro, mas que provavelmente estão no seu desejo. Você desejaria que assim fosse.
JTM - Há tanta gente a dizer isto!
JS - Meu caro: não me tiram nem sequer um grama ou um átomo da minha raiva contra a instituição chamada igreja católica. Eu não sou nenhum ferrabrás, nem nenhum enviado do demónio. Mas o que merece crítica, pode contar com a minha pessoa. Ao contrário do que diz, eu não sou intolerante. Radical, sim. E a isso não renuncio. É uma atitude muito exigente, moralmente exigente, que me leva a insurgir-me contra o que não me parece bem.
JTM - Eu não digo que o José Saramago é intolerante. Digo que as suas palavras de domingo foram intolerantes, o que é uma coisa diferente. Ninguém está imune à intolerância. Talvez os momentos mais difíceis do cristianismo tenham sido aqueles em que, fechados em nós próprios, achámos que temos a razão, ou que não errámos, ou que estamos costurados no interior de uma certeza. Há palavras nossas que iluminam e outras que enegrecem. A sua postura ética, atitude moral, a sua intransigência, enobrece-nos a todos. É bom que um escritor seja exigente. Isto não significa que nas palavras que proferiu nós não víssemos uma limitação muito grande. E na forma como o seu romance está construído, há também zonas de ambiguidade, a começar pelo "livro dos disparates". A Bíblia é um grande património da humanidade, é um lugar onde todos nos encontramos. Pela primeira vez, todas as componentes da sociedade estão presentes numa grande narrativa literária, porque precisamente a Bíblia não exclui. A Bíblia é um coral de vozes humanas. E por isso é tão importante o papel de Caim - ele é o nosso irmão...
JS - Disse que é um coral, mas, sem querer ser frívolo - que não está nada na minha natureza, porque tomo tudo a sério -, com muitas desafinações.
JTM - Mas as desafinações fazem parte da história humana. É preciso amar a imperfeição!
JS - Não escrevi um livro sobre a Bíblia. Escrevi a partir de um episódio bíblico e construí uma história. Caim não foi um capricho de há uns meses, é algo que sempre me preocupou. A mim, a Bíblia permitiu-me escrever o que não estava dito - embora não tenha sido a primeira pessoa a fazê-lo.
JTM - Dizer isso é fazer um elogio extraordinário à Bíblia.
JS - Para terminar: escrevi, penso, alguns bons livros. No meu estado de espírito presente, considero este o meu melhor livro.
JTM - Tenho a humildade de não concordar. No conjunto da sua obra, este é um exercício, a par dos seus grandes livros.
JS - De exercício não tem nada, meu caro. Tire lá esses óculos e ponha outros, e leia-o como deve ser lido.
JTM - Li o livro com muita atenção e hei-de voltar a ele. Mas é uma narrativa que não tem a grande complexidade nem a invenção romanesca de outros romances. Mas percebo que esteja tremendamente ligado a este livro.
JS - Assim é. Dois homens de boa fé sempre se podem entender.
Versão integral do texto publicado na edição do Expresso de 24 de Outubro de 2009, 1.º Caderno, página 20 e 21.


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