O SENHOR BARATA
16.11.2017 às 8h30
As pessoas têm a ideia que a morte é a solidão total num nada completo. E provavelmente é. Julgo que é. Mais: tenho a certeza que é, mas não somos capazes de conceber isso. Não aceitamos conceber isso. De forma alguma nos resignamos a isso. E assim nasceram as religiões. Que todas elas nos prometem, nos garantem, nos juram a existência do dia seguinte e o tornam mais ou menos aceitável
Ilustração: Susa Monteiro
George Steiner perguntou-me
– Sabe porque é que os judeus não se matam?
esperou um bocadinho e como não disse nada respondeu ele por mim:
– Não podem suportar a ideia de não ler o jornal no dia seguinte
e fiquei a olhar para a sua cara lá em baixo
e fiquei a olhar para a sua cara lá em baixo
(ele é mais pequeno)
com um sorriso nos olhinhos agudos. Isto não é só verdade para os judeus, claro. Quem
(mesmo aqueles que, como eu, não lêem jornais)
suporta a ideia de não ler o jornal do dia seguinte? Não saber o que vai passar-se? Ficar sozinho num vazio absoluto? As pessoas têm a ideia que a morte é a solidão total num nada completo. E provavelmente é. Julgo que é. Mais: tenho a certeza que é, mas não somos capazes de conceber isso. Não aceitamos conceber isso. De forma alguma nos resignamos a isso. E assim nasceram as religiões. Que todas elas nos prometem, nos garantem, nos juram a existência do dia seguinte e o tornam mais ou menos aceitável. Se até há quem suba ao céu de corpo inteiro. Se até há, como Jesus garantiu ao ladrão, quem hoje mesmo estará connosco no Paraíso. No meu caso quando lá chegar encontro logo o senhor Barata, que faleceu há dias, é que nem ginjas. O senhor Barata a quem daqui a uns tempos vou dar um abraço
– Dê cá mais cinco, senhor Barata
e que costumava comer no mesmo restaurantezinho que eu. Era gordo, pequeno, com um eterno boné na cabeça, colocado numa exactidão de cápsula, de calções, com um saco de cabedal a cair-lhe do ombro esquerdo. Passava o almoço sem companhia, ou antes na companhia do telemóvel e do jornal, que lia todo até os anúncios
(com fotografia)
das vendedoras de carícias a preços em conta e nádegas atlânticas, oferecendo beijos na boca e
(passo a citar)
bum-buns gulosos, cujas dimensões me provocavam um certo receio de ser completamente devorado e ficar na companhia dos colegas da véspera. O senhor Barata tinha sido tipógrafo, mostrou-me logo à primeira o seu cartão de membro do Partido Comunista que, sei lá a razão, imaginava mais castos e afinal malandrecos, e um retrato dele em Maputo, fardado de soldado e com um cão da Polícia Militar pela trela, garantindo-me que, como eu, também havia passado por África a defender o Império, e decidiu tratar-me logo por tu. Respondi-lhe
– Você se quer falar comigo diz Sua Alteza
mas a sua solidão comoveu-me. Morava sozinho não percebi bem onde, cheirava a infelicidade que tresandava, adoecera tempos antes e a quimioterapia enfraquecia-o muito:
– Um cancro do pulmão, sabe?
como por acaso não sabia comovi-me mais. Apontou o boné
– Já me atingiu a cabeça
mostrou-me a papelada médica e eu lá tentava animá-lo o melhor que podia sobre os nossos pratos de peixe espada. Que eu percebesse não tinha mulher nem filhos, nunca lhe vi nenhum compincha e lá íamos falando nisto e naquilo sobre as nádegas do jornal onde às vezes me parecia que um Lenine a espreitar, embora não se sentisse com ânimo para frequentar o Partido nem as meninas. Comia no restaurantezinho, fazia os tratamentos e depois seguia para casa, tão solitário como um cacto no Pólo Norte. Não se queixava, ia aguentando com dignidade a sua cruz, caminhava na direção de uma noite secreta, sem queixas, sem azedume, sem tragédia, falando-me dos seus tempos de tipógrafo e do seu respeito pelos livros, até já lera um dos meus
(percebia-se logo que mentia)
ou um bocado de um dos meus, mas era tudo tão difícil agora. Disse-lhe que era tudo difícil desde o princípio e ele, em resposta, encheu-me dos seus tempos de África, onde ainda convertera dois ou três cabos ao marxismo-
-leninismo que continuava a apoiar sem reservas, embora crítico e lúcido. Gostou que eu também houvesse andado por esses lados, mas a possibilidade da morte levara-o a abandonar o ateísmo, com os rabos do jornal na ideia, que sempre ajudam, Alteza, pensa-se que não mas ajudam. Depois de uns dias sem aparecer no restaurantezinho perguntei por ele ao dono que me segredou
– O senhor Barata morreu
ou seja encontraram-no no chão, em casa, ainda vivo, e foi acabar ao hospital. Custa-me dar com outro freguês na sua mesa agora. Eu gostava do senhor Barata. Não pensem que não: gostava mesmo e tenho pena que não possa ver, no periódico, os rabos dos amanhãs que cantam. Escrevi isto num tom propositadamente ligeiro a fim de me impedir de secar a ramela de uma lágrima. Se eu tivesse um boné como o dele enfiava-o na cabeça numa exactidão de cápsula.
Crónica publicada na VISÃO 1288 de 9 de novembro
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