terça-feira, 28 de janeiro de 2020

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As pequenas doenças da eternidade

Ilustração: Susa Monteiro
Era, então, que o seu menino a salvava. Penteava a mãe, dizia ele, para que ela nunca morresse. Nesses cuidados, a vizinha ficava curada das suas pequenas doenças. Mais do que curada: Margarida ficava eterna
Na realidade não há adultos,
Há apenas jovens envelhecidos.
José Emílio Pacheco
Deus me dê a felicidade das pequenas doenças, era o que pedia a nossa vizinha Margarida Maralto. Na penumbra da sala, sentada num desgastado sofá, a senhora tricotava uma camisola de lã, sem saber para qual dos filhos a peça de roupa se destinava. Depois se vê, dizia. É consoante o tamanho em que ficar, acrescentava. Falava como se a obra mandasse nela.
Margarida costurava enquanto Júlio, o mais novo dos filhos, a penteava com uma escova de madrepérola. Júlio era o meu amigo preferido. Uma e outra vez, assisti àquela encenação e vi como, no final, o meu amigo recolhia os cabelos tomados no chão para os erguer de encontro à luz da janela. Cada cabelo brilhava como se fosse um fio de lã tricotando nuvens. Naquele momento, Júlio amarrava no céu os cabelos da mãe.
Margarida Maralto espreitava pela janela, mas não eram nuvens que ela queria ver. Esperava pela chegada do marido. Sabia que ele a estava a trair com outra, algures num quarto da cidade. Margarida tinha os olhos em maré vaza. Mas fazia de conta de que não havia espera, de que não havia marido, de que não havia cidade. E de que ela mesmo deixava de haver. Era, então, que o seu menino a salvava. Penteava a mãe, dizia ele, para que ela nunca morresse. Nesses cuidados, a vizinha ficava curada das suas pequenas doenças. Mais do que curada: Margarida ficava eterna.
Certa vez, Júlio dirigiu-se a mim para que convencesse a sua mãe a não incomodar Deus com as suas disparatadas encomendas. A mãe sorriu, condescendente: a vantagem da pequena enfermidade, explicou ela, é que acontece sem causa nem culpa. Adoecemos porque foi essa a nossa escolha. No falso sofrimento da pequena doença esquecemos as verdadeiras e incuráveis dores com que nascemos e iremos morrer. Outra vantagem: não se gasta em remédios. Para nos curarmos basta o conforto dos outros. E beijava o filho enquanto vaticinava: tivesse ela sucessivas pequenas doenças e seria feliz a vida inteira.
De regresso a casa, eu relatava aos meus pais o que se passara na residência anexa. Não estranhes, sossegava a minha mãe. A vizinha Margarida nascera assim, já era mãe quando viu pela primeira vez a luz. Ainda criança, carregou sozinha nos pequenos braços a infância dos seus irmãos. Por isso, ela agora se devotava tanto aos filhos. Aos sábados, entrava em casa com os braços cheios: vejam meninos, trouxe arrufadas. Anunciava-se como portadora da maior fortuna. Poupara toda a semana e dos seus dedos quiromantes tinham nascido umas tantas moedas. Sentadas na cozinha, a massa das arrufadas presa entre os dentes, as crianças riam-se de coisa nenhuma. E agora que os filhos todos já tinham saído de casa, restava-lhe Júlio com a sua infatigável escova de madrepérola. A minha presença, dizia-me ela à despedida, ajudava-a a varrer a saudade desses ausentes.
Até que um dia se descobriu que Júlio sofria do coração. Uma válvula, disseram. Eu não queria ouvir: doía-me saber que Júlio estava doente. E doía-me mais ainda saber que o coração tem peças. Primeiro, neguei. Havia um erro. O médico não conhecia realmente o meu amigo para lhe diagnosticar um defeito cardíaco. O coração de Júlio era infinito. Aos poucos, porém, o diagnóstico foi ficando verdade. Júlio ria-se sorvendo o ar com pequenos goles. E ficava cansado só de sonhar. Até que a alma se tornou um peso. Incapaz de correr, Júlio abandonou o seu lugar como avançado de centro da nossa equipa. Restou-lhe o papel de árbitro. No primeiro jogo, porém, ele quase desmaiou quando tentou soprar no apito. E nunca mais assinalou nenhuma falta.
Um dia foi a vida quem assinalou falta contra Júlio Maralto. A minha mãe acordou-me cedo e levou-me pela estrada de asfalto que nos conduziu ao cemitério. Os meus dedos cravados nos dedos dela, a mão e a mãe, tão próximos os seres, tão gémeas as palavras.
Contemplei Júlio deitado num caixão e os olhos dele estavam semiabertos, os olhos dele pediam que os salvássemos daquela imobilidade. Nenhum dos adultos sabia corresponder a esse desesperado apelo. Só eu levei para casa aqueles olhos dele, arfantes e semiabertos.
No canto do cemitério, a mãe de Júlio estava sentada numa cadeira e parecia uma rainha, as costas direitas, o olhar suspenso no infinito. As pessoas debruçavam-se sobre ela e dedicavam-lhe o impossível conforto de gestos e palavras. Margarida Maralto permanecia alheia. Quando me aproximei, porém, ela segurou-me no braço e fixou-me longamente para murmurar: agora é que viver já não tem cura. Uma lágrima ameaçava soltar-se no meu rosto quando Margarida deu um jeito nos cabelos e perguntou: estou bem penteada? A minha mãe abraçou-a sem conseguir articular palavra. Foi a vizinha que a consolou: nós sabemos, somos mulheres, quem é morto sempre aparece…
Agora, todas as tardes, vou visitar Margarida, mirrada dentro do vestido negro. Naquele corpo, tão magro e escasso, não cabem nem pequenas nem grandes doenças. Já contei todos os meus ossos, anuncia como um relato dos seus afazeres diários. E conclui: os ossos que traz no corpo são os que bastam, uns para sustentar lembranças, outros para devolver à terra. Contempla os muros como se esperasse que eles florissem e ergue o pescoço para dizer que está pronta. Empunho a escova e penteio os seus cabelos cada dia mais brancos. A vizinha não demora a adormecer. E eu me retiro, pé ante pé, para não interromper as eternidades da vizinha Margarida Maralto.
(Crónica publicada na VISÃO 1399 de 26 de dezembro)

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Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto | 27 de janeiro

O horror de Auschwitz e do holocausto por quem o escreveu na primeira pessoa: Primo Levi

26.01.20
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Três crianças judias aguardam numa estação de comboio em Londres após viagem no chamado "Kindertransport"
[Texto de Tiago Palma | Observador]

O mais sangrento dos campos de concentração foi libertado há 71 anos. É hoje o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto. E poucos como Primo Levi escreveram sobre ele. Viveu-o. Sobreviveu-lhe.
Isto é o inferno. Hoje, nos nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua a não acontecer nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam-se no chão. O tempo passa, gota a gota. Primo Levi, “Se Isto é um Homem” (1947)
11 de abril de 1987. Na manhã em que Primo Levi morreu – o relatório da polícia italiana aponta para uma tese de suicídio, relatando que Levi se atirou mortalmente do terceiro andar de casa, em Turim –, Elie Wiesel, autor de “A Noite” (também sobre a experiência de horrores vivida num campo de concentração nazi) e prémio Nobel da Paz em 1986, escreveu: “Primo Levi não morreu hoje. Morreu há quarenta anos, em Auschwitz.” Levi tinha 67 anos à data do suicido.
Não é (nem nunca foi) uma teoria da conspiração por parte de Wiesel dizê-lo. É antes a constatação de que o homem-Levi, químico, resistente anti-fascista na frente de guerra, não voltou de Auschwitz homem, mas apenas um corpo, com memória e uma mão com que escrever.
Aos 24 anos foi transportado para Auschwitz. Ele e outros seiscentos e cinquenta judeus italianos. Estávamos em fevereiro de 1944. Deles, só vinte sobreviveram — Levi incluído. Quando se viu, enfim, libertado pelo exército soviético, a 27 de janeiro de 1945, ao fim de 11 meses de privação e indignidade humana, Levi havia envelhecido, não 11 meses, mas décadas. Não só fisicamente. Mas serviu-lhe a experiência, de morte, não a sua mas a que testemunhou dia-a-dia à sua frente, todos os dias, a experiência de sobreviver quase miraculosamente — a resiliência fez o resto –, essa experiência-limite permitiu-lhe escrever, por exemplo, “Se Isto é Um Homem” (a trilogía de Auschwitz completa-se com “A Trégua” e “Os que Sucumbem e os que se Salvam”).
Nem só sobre o holocausto escreveu Primo Levi, mas quando o fez, mais do que procurar culpados ou explicações, narrou. Simplesmente isso: narrou o horror, sem artifícios, com crueza, a vida no mais sangrento dos campos de concentração do Terceiro Reich. O campo foi libertado há 71 anos. E também por isso se assinalada, nesta data e desde 2005, o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto.
Mais do que ler a não-ficção de autores como Levi, Wiesel ou Imre Kertèsz, mais do que ver no cinema ou em casa “A Lista de Schindler” e, mais recente, “Filho de Saul”, de Laszlo Nemes (o filme recebeu o Grande Prémio de Cannes e o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro), mais importante que isso é ler os relatos, sem polimentos literários ou de realização, como os que Levi (a par com Leonardo de Benedetti) escreveu em “Assim foi Auschwitz”. Em 1945, no rescaldo do fim da Guerra e da libertação dos campos de concentração pelos aliados, o exército soviético pediu a Primo Levi e a Benedetti, seu companheiro de campo, que redigissem, em detalhe, como eram as condições de vida lá. O resultado foi um dos primeiros relatórios alguma vez realizados sobre os campos de extermínio. Os textos de Levi, inéditos, finalmente trazidos à estampa no último ano, têm um valor histórico e humano tão importante hoje, 71 anos volvidos sobre o fim da Segunda Guerra, como quando este os escreveu.
Lá, Levi escreveu — o mesmo Levi que, em “Se Isto é Um Homem”, sentia mais culpa por ter sobrevivo (e os outros não) do que culpava os nazis pelo extermino — que “a responsabilidade repousa colectivamente sobre todos os soldados, sargentos e oficiais da SS destacados em Auschwitz”. O livro “Assim foi Auschwitz” serviu também para, ao longo das décadas — e ainda nos nossos dias –, trazer ex-carrascos aos tribunais. Julgá-los. Para que a história os recorde como isso: carrascos. Por outro lado, é também importante perceber que Primo Levi considera que, mais do que o mero extermino de judeus, os campos de concentração serviam para impulsionar a própria economia da Alemanha.
Escrevia Levi: “Os campos não eram um fenómeno marginal: a indústria alemã baseava-se neles; eram uma instituição fundamental do fascismo na Europa e os nazis não o escondiam: mais do que mantê-los, alargavam-nos e aperfeiçoavam-nos.”
Num sábado, dia 11 de Abril, em 1987, por volta das 10 horas da manhã, a porteira de um prédio na avenida Corso Rei Umberto, em Turim, tocou à porta do 3.º andar para, como em todos os dias, entregar o correio. Primo Levi abriu-lhe a porta, sorriu-lhe e recebeu-o. Voltou a entrar em casa. Poucos minutos depois o seu corpo estatelava-se no fundo da escada, ao lado do elevador. Morreu instantaneamente. Primo Levi sobreviveu ao holocausto no pior dos campos de concentração. Não sobreviveu aos dias fora dele — mas com ele por dentro, vivo, a remoer-lhe.

Referência: Palma, T. (2020). O horror de Auschwitz e do holocausto por quem o escreveu na primeira pessoa: Primo Levi – ObservadorObservador.pt. Retrieved 26 January 2020, from https://observador.pt/2016/01/27/horror-auschwitz-do-holocausto-escreveu-na-primeira-pessoa-primo-levi/

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