segunda-feira, 1 de abril de 2019

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6 líderes de Silicon Valley que educam os seus filhos longe da tecnologia

6 líderes de Silicon Valley que educam os seus filhos longe da tecnologia

6 líderes de Silicon Valley que educam os seus filhos longe da tecnologia
POR LINK TO LEADERS EM 20 OUTUBRO, 2018

Conheça alguns dos líderes do setor da tecnologia que adotaram uma estratégia “low tech” na educação dos filhos e os seus argumentos para essa opção.

Trabalhar em Silicon Valley não implica ser um discípulo da tecnologia. Alguns dos principais executivos do setor – entre os quais se incluem o ex-CEO da Microsoft, Bill Gates, ou o CEO da Apple, Tim Cook – educam os seus filhos de forma pouco tecnológica.
Muitos deles justificam a sua atitude com o facto de consideraram que os produtos que criaram não serem necessariamente adequados para um cérebro em desenvolvimento.
Bill Gates estabeleceu um limite de idade para usar o telemóvel
Bill GatesAgora os três filhos do multimilionário são mais velhos, mas Bill Gates e a sua esposa proibiram-nos de usar o telemóvel até aos 14 anos de idade.
A decisão vem de um incidente em 2007, quando o empresário percebeu que a filha passava muito tempo a jogar videojogos. “Costumamos definir uma hora a partir da qual não há ecrãs e isso ajuda-os a ir para a cama a uma hora razoável”, disse ao The Mirror.
Steve Jobs proibiu a sua própria tecnologia em casa
Steve JobsJobs, CEO da Apple, revelou em 2011 numa entrevista ao New York Times que proibia os seus filhos de usar o iPad recentemente lançado.
“Restringimos a tecnologia que os nossos filhos usam em casa”, disse ao jornalista Nick Bilton. Jobs era conhecido pelo seu interesse no budismo zen e pela sua crença no valor do minimalismo. A sua primeira casa em Palo Alto apenas tinha móveis.
Tim Cook não quer que o sobrinho use redes sociais
Tim Cook
Cook, o atual CEO da Apple, disse que não permite que o sobrinho use as redes sociais.
“Eu não tenho filhos, mas tenho um sobrinho a quem estabeleço limites”, disse Cook, segundo o The Guardian, admitindo que os produtos da Apple não são destinados ao uso constante. “Eu não sou aquele tipo que diz que alcançamos sucesso se usarmos a nossa tecnologia a toda a hora”, explicou”.
Chris Anderson mantém uma política rigorosa
Anderson, CEO da empresa de drones 3D Robotics, disse ao New York Times que os filhos chamavam-lhe “fascista” por implementar um regime que restringe o uso de tecnologia. Os seus cinco filhos garantiam-lhe que nenhum dos amigos tinha as mesmas regras.
E Anderson respondia-lhes: “Isso é porque vemos os perigos da tecnologia em primeira mão. Eu mesmo já vi e não quero que isso aconteça com os meus filhos”. Anderson também revelou que todos os dispositivos na sua casa tinham controlo parental.
Evan Williams prefere uma biblioteca física
Williams é um dos cofundadores do Twitter, Medium e Blogger, o que significa que coloca muita ênfase na palavra escrita.
Mas apesar da sua impressionante trajetória, Williams disse que ele e a sua mulher reuniram uma coleção de livros no lugar de produtos digitais para tornar os filhos mais letrados. A ideia é que eles leiam no mundo analógico e não num iPad ou num livro eletrónico.
Satya Nadella limita o uso de ecrãs aos filhos
 Satya Nadella
Numa entrevista ao The Washington Post, Satya Nadella, CEO da Microsoft, reconheceu que o vício em tecnologia era, para si, uma preocupação. Na verdade, o empresário explicou que, por esse motivo, restringiu o tempo de interação dos seus filhos com os ecrãs.
“Qualquer coisa em excesso é sempre um problema”, disse. Mas Nadella vai mais longe: exige que os funcionários se desconectem, pelo menos, dois dias por semana. Para tal, usa um software de Inteligência Artificial (IA) que o lembra para não enviar e-mails aos trabalhadores durante os fins de semana. Para o CEO da Microsoft, o equilíbrio entre a vida familiar e profissional não é uma questão trivial.


in: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/17-nov-2018/interior/de-silicon-valley-a-alhandra-escolas-onde-a-tecnologia-nao-entra-10164729.html


De Silicon Valley a Alhandra. Escolas onde a tecnologia não entra
Cérebros que trabalham para empresas de alta tecnologia não querem os filhos em escolas com acesso a computadores, tablets ou smartphones. Em Alhandra há uma dessas escolas. Afinal, o que faz parte do quotidiano dos adultos deve ou não ser do conhecimento das crianças?
Graça Henriques
17 Novembro 2018 — 06:24


As galochas estão sujas de lama, alinhadas em prateleiras antes das salas de aula. Sinal de que, apesar da chuva, foram calçadas para chapinhar nas poças de água do pátio, onde com um resguardo não há chuva que incomode... e ninguém impede as crianças de brincar, de subir às árvores, de ajudar a tratar dos animais... Nas salas de aula, os alunos calçam pantufas quentinhas que oferecem o mesmo conforto de casa. Esta é a Escola Jardim do Monte, numa quinta em Alhandra (Vila Franca de Xira), onde cerca de 130 alunos estudam desde o jardim-de-infância ao 6.º ano de acordo com a pedagogia Waldorf, a mesma que pretende desenvolver indivíduos livres, integrados, socialmente competentes e moralmente responsáveis. Onde as crianças são vistas como um indivíduo único e se contesta a teoria de que cada criança é uma tábua rasa.
Uma escola que segue a pedagogia Waldorf é uma escola muito diferente das do ensino convencional - desde logo porque nestas salas de aula não entram computadores, tablets esmartphones antes do terceiro ciclo, nunca antes de as crianças terem 13 ou 14 anos. O debate cá fora faz-se ao contrário, enaltecem-se as vantagens das tecnologias como instrumento da procura de informação e do saber e a sua utilização na sala.
Espante-se quem nunca tinha ouvido falar da pedagogia Waldorf ao ficar ainda a saber queos pais de Silicon Valley, aqueles que são cérebros de empresas de tecnologia como a Google, a Facebook ou a Microsoft, só para dar três exemplos, estão a procurar estas escolas para os seus filhos... porque querem as suas crianças arredadas dos ecrãs nas salas de aula e preferem que tomem contacto com um tipo de ensino alternativo, cujo objetivo é integrar de maneira holística o desenvolvimento físico, espiritual, intelectual e artístico.
Mas, conta o TheNew York Times, os pais de Silicon Valley estão tão reticentes em aproximar os seus filhos dos ecrãs que chegam a obrigar as amas a assinar contratos em que estas se comprometem a não usar os telemóveis enquanto estão a cuidar das crianças. O que, dizem algumas, não deixa de ser bizarro porque são pais interessados, que podem ligar a qualquer hora para saber dos filhos.
"A criança precisa de contactar diretamente com a fonte do saber - e o computador não é uma fonte direta de saber, é um transmissor"

Leonor Malik, presidente da HARPA, a associação que gere a escola Waldorf Jardim do Monte, em Alhandra, explica a opção desta pedagogia, que só traz os ecrãs às salas de aula no 8.º ano: "Até determinada idade, 13/14 anos, para formar uma relação edificadora com o saber, a criança precisa de contactar diretamente com a fonte do saber - e o computador não é uma fonte direta de saber, é um transmissor. O computador não vai ajudar no processo educativo e evolutivo da criança até determinada altura porque ela precisa de criar a tal ligação direta com a fonte de conhecimento, para que passe a fazer parte de si."
Na sua opinião, quando chega à adolescência, "o ser humano, em termos do seu desenvolvimento natural, está apto a funcionar mais à vontade com o pensamento abstrato e com a capacidade de se relacionar com as coisas à distância". Logo, está mais apto para usar computadores.
Não quer isto dizer que Leonor Malik proíba as crianças de usarem tecnologias em casa, isso é uma opção, que diz respeito aos pais, embora faça questão de os alertar para os malefícios. Mas será de acreditar que quem procura deliberadamente esta pedagogia alternativa queira também segui-la em casa, certo? Ana Granja tem dois filhos na escola Waldorf de Alhandra, o André (10 anos) e a Matilde (6). Confessa que descobriu a pedagogia quando procurava escolas com alimentação biológica - em casa são vegetarianos, esta escola serve refeições ovolactovegetarianas. Mas depois de conhecer o estabelecimento encantou-se - a mãe e as crianças. Diz que "é a melhor escola do mundo", pelo respeito pelo meio e pelo espaço à sua volta. E não tem dúvida de que os seus filhos serão "seres humanos mais bem preparados".
Para brincar na rua, os alunos calçam galochas. Na sala de aula usam pantufas quentinhas.
© Paulo Spranger/Global Imagens
Concorda que na escola não haja recurso a ecrãs, mas em casa cede cerca de uma hora por dia. Ao fim de semana pode ser mais um bocadinho. "A nível de aprendizagem, a tecnologia e os computadores não têm importância, são dispensáveis, distraem mais."
Ana Granja é auxiliar de ação educativa e não deixa de ter opinião sobre as decisões dos pais de Silicon Valley, os especialistas da tecnologia que querem ver os seus filhos mais novos afastados destas coisas. "Os mais entendidos no assunto sabem bem o que mais os prejudica, têm um grande conhecimento sobre a matéria."
Isso mesmo pensa Leonor Malik - que quem trabalha com elas conhece melhor do que ninguém os malefícios das tecnologias. José Morgado, professor de Psicologia da Educação do ISPA, vê neste tipo de posição vinda de quem em princípio não se esperava uma semelhança com o que acontece noutros planos, nomeadamente nas questões que dizem respeito à alimentação e ao consumo, como os movimentos slow, de desacelerar a vida. "São fenómenos reativos a algum tipo de excessos em que as pessoas julgam estar a ficar envolvidas profissionalmente. Percebem que aquilo pode não ser a melhor opção de modelo de vida e procuram prevenir nos seus filhos o risco de desenvolverem relações tão próximas e tão persistentes, quase exclusivas, neste caso com as novas tecnologias."
Crianças devem conhecer quotidiano dos adultos
No entanto, considera que é preciso evitar algum fundamentalismo do tipo "agora vamos banir o acesso e a utilização das novas tecnologias". "Também não me parece que a resposta a uma sobreutilização ou dependência quase exclusiva dos ecrãs (que são quase babysitters) seja banir. Até porque as estratégias proibicionistas nos miúdos quando ao lado têm outros que usam é como as questões do tabagismo - é melhor mediar, ajudar a construir uma utilização autorregulada." É isso que faz Ana Granja - deixa os filhos brincarem uma hora por dia com computadores. Mas chega. Para ela é preferível uma escola que nem sequer tem rádio na sala, onde quem canta são os próprios alunos.
Para o professor universitário José Morgado não há dúvidas: aquilo que faz parte do quotidiano dos adultos deve ser do conhecimento das crianças, dentro dos respetivos parâmetros etários: "Não vejo razão para que os ecrãs não estejam presentes, com a devida cautela, com a devida mediação, com a devida parcimónia, na vida dos miúdos mais novos. Não há nenhuma razão para isso, até porque são ferramentas de acesso ao conhecimento mas também de adaptação à realidade que vão encontrar ao longo da vida."
Leonor Malik, da Escola Jardim do Monte, entende que a utilidade de usar as tecnologias, nomeadamente um computador, só vai revelar-se quando o aluno perceber o que é um computador. Por isso, na sua escola (que neste ano não tem 3.º ciclo), antes de começarem a usá-lo observam máquinas desmanchadas para perceberem como são por dentro e como funcionam. Só depois passam à fase seguinte.
A lã retirada às ovelhas da quinta acaba por dar forma a barretes para o inverno. 
© Paulo Spranger/Global Imagens
Mesmo que o uso das tecnologias chegue mais tarde, Leonor Malik acredita que as crianças que estudam segundo a pedagogia Waldorf serão adultos adaptados no futuro. Porque durante anos estimularam a criatividade, a autonomia e a responsabilidade. "Os nossos alunos distinguem-se pela autoconfiança."
Um patamar que se atinge estimulando o lado artístico e espiritual numa forma de aprender que fica muito longe dos métodos de ensino tradicional. As aulas não são expositivas, fomentam uma dinâmica de pesquisa, de experimentação, de observação. Por exemplo, pode-se aprender matemática na quinta, quando se semeiam favas, medindo os centímetros de distância entre cada leguminosa, somando os centímetros entre duas ou três. Ou até multiplicando o número de fileiras para se chegar ao total de favas plantadas. Ou seja, aprender e experimentar, de preferência em contacto com a natureza. É essa a base da pedagogia assente na filosofia da educação, a antroposofia, criada em 1919 pelo austríaco Rudolf Steiner.
Essa é a crítica que Leonor Malik faz ao ensino tradicional. "A escola é hoje meramente informativa e deixa de ser formativa. Ensinar frações a uma criança pequena é um disparate, não contribui para o que se pretende, que é crescer com o saber, para que seja formativo, para que se edifique e possa vir a construir o seu projeto de vida de forma que tenha sentido próprio e possa viver em coerência com algo."
Incoerência é, de resto, algo que recusa na não utilização de tecnologias nas salas antes dos 13, 14 anos. "O adolescente começa a etapa de fechar uma porta e ir pensar no assunto, começa esse trabalho que é depois o trabalho de uma vida. Antes disso, a criança quer é ver as coisas, senão é tudo uma seca. Quando a adolescência nos traz essa nova característica, então aí vamos explorar essa capacidade que o adolescente já tem de se relacionar com o pensamento abstrato e de poder rever e relacionar-se com as coisas à distância dentro de si próprio, por experiências que ganhou. E aí o computador passa a ser um instrumento útil."
Vejo que aqueles pais são sobreutilizadores das tecnologias, sabem o peso que o excesso de ligação aos ecrãs tem na falta de qualidade de vida

Chegaremos ao ponto de ter as escolas mais pobres equipadas com ecrãs e as mais ricas livres de tecnologia? Diz José Morgado: "Em Silicon Valley, os pais estão a sofrer de uma overdose. Mas não percebo como é que fazemos um back to basics tão forte, a não ser que isso seja uma opção de vida. Posso ir viver para uma caverna, é a minha opção de vida, transformo-me em vegan, só como o que a natureza dá e faço um back to basics rigoroso, fundamentalista. Eu não vejo a vida assim, vejo que aqueles pais são sobreutilizadores das tecnologias, sabem o peso que o excesso de ligação aos ecrãs tem na falta de qualidade de vida e dizem 'não quero que os meus filhos passem por este tipo de experiências'. Para isso não preciso de as proibir, porque não tenho a certeza se não vou criar um problema para acabar o outro."




TEMOS UM ESPAÇO NOVO.

VEM DESCOBRI-LO.


terça-feira, 26 de março de 2019

in: https://www.dn.pt/cultura/interior/o-conto-de-mia-couto-que-antecipava-a-tragedia-do-ciclone-idai-10721541.html


·         INÍCIO 

·         CULTURA
O conto de Mia Couto que antecipava a tragédia do ciclone Idai
De como o velho Jossias foi salvo das águas é um conto do primeiro livro do escritor moçambicano Mia Couto, Vozes Anoitecidas. Um texto onde se fala da "chuva está a chover até os poços começaram cuspir".
Uma criança entre os destroços alagados em Busi, perto da Beira
© REUTERS/Mike Hutchings
25 Março 2019 — 13:18
De como o velho Jossias foi salvo das águas
I. Lembrança do tempo de antigamente
A terra estava a conversar com agosto e o velho Jossias, parado, escutava. Os meses estão todos no ventre uns dos outros, pensava ele. E adivinhava a chegada dos dias, suas roupas e cores. Sabia da chegada da chuva, pressentia as suas gotas timbilando a areia.
- A água vai andar ler o chão. Vai lamber as feridas da terra, parece um cão vadio - dizia o velho.
E voltava ao silêncio, os olhos no alto a medir as nuvens, por precaução.
- Parece é só metade da chuva. Há de caber bem na terra.
Enquanto profetizava, amoleciam-lhe os olhos de promessas, uma procissão de verde a tomar-lhe conta dos sonhos.
- O milho vai-me tratar por senhor.
E era já gente grande, sorrindo do gozo antecipado da fartura. Assaltou-o a recordação da grande fome de há vinte anos. Foi-se rendendo ao sono, agora que o pensamento se deitara na sombra daquela lembrança.
Recordava-se bem: as cerimónias para pedir chuva sucediam-se em casa do régulo. As rezas eram palavras sem mais além: nem uma gota se convencera a descer. Durante mais três anos os velhos insistiram, conversando com os mortos que mandam na vontade da chuva.
Naquela manhã, logo cedo mataram o boi. As mulheres prepararam a aguardente do milho, o ngovo.
No cemitério os velhos pediam aos defuntos a licença da chuva. Depois das rezas, dariam de beber aos mortos deitando aguardente sobre as campas.
- Sou eu que vou levar as panelas do ngovo - ofereceu-se Jossias.
Deram-lhe a vaidade daquela entrega. Com respeito, ele partiu pela areia quente dos trilhos. No caminho, parou com pena do cansaço dos braços. Pesavam as panelas. O calor e a sede sopravam-lhe maus conselhos, barulhando convites.
Bebeu, fechando os olhos à voz da aguardente. Repetiu mais três vezes. Certeiro, o álcool começou a cacimbar a razão. As panelas sorriam-lhe, mornas e gordas. Parecem a Armanda quando dança a provocação que ela sabe, murmurava.
- Vocês? Vocês estão-me sacudir o sangue!
Falava devagarmente, enrolando as palavras sem que a cabeça entrasse naquele pensamento. A voz de Armanda avisava-o do castigo, endireitando-lhe o juízo que faltava. E ele, outra vez para as panelas:
- Meninas, vocês estão desgraçar minha vida. Provocar-me da maneira como assim? É melhor marrar mais outra vez as capulanas. Vou acabar o serviço que fui mandado.
Quis-se levantar mas era um peso. Bebeu mas era só metade: o outro tanto entornava-se pelo peito. Quando reparou, a aguardente tinha quase desaparecido. Restava um quase nada lá no fundo dos potes. Entrou em pânico: como explicar aos velhos? Como contar à aldeia que o ngovo se desviara do seu destino? Tinha que encontrar maneira de emendar a boca, fechar a desgraça que ela destapara.
Passou por um poço abandonado e meteu-se por dentro do escuro. Lá em baixo, havia uma réstia de água estagnada, à espera da sua esperteza. Acrescentada daquela água malcheirosa a bebida do milho voltaria a encher os potes de barro. Os mortos não notariam a diferença, o paladar deles está já esquecido dos saborosos pecados.
Moda os mineiros, pensou enquanto descia pelas paredes do velho poço. Estava suspenso pelas mãos, os pés a procurarem o fundo, quando, de repente, as paredes desabaram. Caíram pareciam o céu inteiro a desfazer-se em areia e pó, o peso do mundo a pisar-lhe no peito. Mãe, vou ficar aqui em baixo de embaixo, ninguém que me vai encontrar, chorava Jossias.
E ali ficou imóvel, soterrado, dormindo no subúrbio da morte, expulso da luz e do ar. Horas de tempo, pensou no nunca mais. A lembrança de Armanda veio socorrê-lo. Agarrou-se à frescura da recordação, aquele rosto era a sua última crença.
E os outros quando viessem procurá-lo? Haviam de o adivinhar subterrâneo, toupeirando a réstia de vida que lhe faltava? Aguentariam descascar a terra até lhe encontrar?
Mas mesmo a esperança dele já não tinha vontade. Ser salvo, para quê? Beber areia, afundar-se num poço, despedir-se do mundo, tudo isso, não era nada comparado com o que vinha a seguir. Todos lhe negariam desculpas. Mesmo Armanda.
Quando saísse ele havia de escolher o longe, viver na distância, envelhecer sem nome nem história.
II O azul todo das cheias

É o quê? Deus já desistiu dos homens? Não se importa da desgraça da terra?
A chuva está a chover até os poços começaram cuspir. Mesmo os sapos e as cobras já não têm casa. E o velho pergunta:
- Por que não descansas sofrimento? Depois de depois voltas mais outra vez...
Mas o destino da morte é ser sempre muita. E chove mais, vão-se molhando as tardes de Novembro, o pilão e a esteira a pingarem juntos no pátio.
O velho está sentado na sombra dos gemidos, só os seus suspiros sonham. O resto é resignação que conspira. Pode-se assim tanto morrer?
Mas ele aprendera a espalhar na sua alma o remédio do há de vir. E consolava-se:
- A farinha há de me visitar, eu sei.
Lentamente, as chuvas iam pousando em todo o lado. Os rios agarravam-se com força ao céu e já nenhum xicuembo sabia desamarrar aquela água. Talvez que o sol, do quente que lhe sobrava, levasse com ele todo aquele azul. Mas não, o sol escorregava pelo zinco, sem beber quase nada. Passava com a cerimónia de um estranho.
- A boca que o sol tem já não chega - lamentava o velho.
III. O salvamento

A água crescia, as coisas e os bichos era só nadarem. Quando tudo em volta era só fumo da água apareceu um barco a motor que trazia dois pretos e um branco. Foi este que falou. As coisas que disse foi no respeito que nunca ouvira. Que palavras eram essas, afinal? Sempre foram asneiras a subirem-lhe no nome, a língua dos portugueses a disparar-lhe na família. Agora, essa língua não tinha maneira de patrão?
- Deve ser maneira de me levar longe da machamba, afastar-me das minhas coisas.
Ou parece não. Os homens queriam que ele subisse para o barco, vinham salvá-lo.
O velho coçou a cabeça, arrastando a mão de trás para a frente.
- Ir onde, se depois da água é só água? Não estão ver que Deus nos quer peixando?
Os pretos falaram atrás, mesma coisa, as pessoas que não viessem no barco haviam de morrer, era com certeza. O velho num sorriso incrédulo:
- Isto é salvar-me? Salvar de quê?
E o velho lembrava-se do desastre nas minas do John, o fogo a espalhar desgraça nas galerias, a devorar vidas e corpos, sim, aquilo era morrer. Quando veio a brigada de salvamento ele sentou-se como uma criança perdida, a chorar. Mas os homens da brigada não pararam para o socorrer, prosseguiram à procura de outras vidas mais valiosas. Um outro mineiro puxou-o pelos braços e gritou-lhe:
- Queres ser lenha, homem?
Lenha? A madeira é lenha antes mesmo de arder. Ser lenha, compreendeu, é morrer assim só, sem ninguém para nos chorar. Só o seu número seria riscado na lista dos contratados. Mas o fumo entrou-lhe pela tristeza e os pulmões ordenaram que procurasse outro lugar. Um homem salva-se se é vontade da sua vida. Os outros são só o alimento dessa vontade.
E assim ficou de estar vivo até hoje.
Salvaram Jossias por duas vezes. Salvaram-no da morte, não o salvaram da vida. Para os outros, para os que o tinham ajudado, foram prémios, fotos no jornal. Ninguém falou que ele, Jossias Damião Jossene, continuava igual como antes, encostado à miséria.
- Salvar um alguém deve ser serviço completo - concluíra. - Não é levantar a pessoa e depois abandonar sem querer saber o depois. Não chega ficar vivo. Palavra da minha honra. Viver é mais.
E assim se decidira Jossias sobre o assunto da morte, não-morte.
Agora, neste caso, mudar para onde? A seguir é só água, o lugar onde saiu esse barco também é água. Mesmo isso já não é barco, é uma ilha com motor. Se é para morrer então prefiro esta morte que veio nadar até à minha casa. Esta terra aqui em baixo já tem as minhas mãos, a minha vida está enterrada neste chão, só falta agora o meu corpo, só.
A equipa de salvamento impacientava-se com a conversa do velho. O gajo o que é que quer?, perguntava o branco. Os outros não traduziam, riam-se apenas. O velho é maluco, vamos carregá-lo à força. Não temos tempo, há outras pessoas para recolher, o velho já perdeu o juízo.
- Deixem-me ficar, não posso morrer longe da minha vida.
Puxaram-no pelas axilas, sentaram-no no banco traseiro do barco e cobriram-no com uma manta.
- Não tens família?
Era o branco. Família? Talvez vocês, agora, são a minha família, aguentaram esta maçada de salvar-me. Apeteceu-lhe responder mas estava a tremer de mais.
- Perguntem-lhe na vossa língua, se a família não está por aqui, nas redondezas.
Perguntaram-lhe. Demorou a responder, queria usar bom português. Agarrou-se com força à velha manta e pôs os olhos naquele mar em volta como se inquirisse pelas coisas que ele cobria.
- Dentro de água não está frio. Porquê não me deixam lá?
Os outros riram-se. Colocaram-lhe mais uma manta sobre os ombros e passaram-lhe uma chávena de chá bem quente. Pelos dedos magros, segurando trémulos a chávena de alumínio, subiu-lhe um estranho calor que não sabia traduzir. E veio-lhe a vontade de ficar para sempre quase naquele barco. Desejou que a viagem não tivesse fim como se o salvassem do tempo e não das águas, como se o tivessem liberto não da norte mas da sua terrível e solitária espera.
Com olhos de menino, fixou o escuro engolindo a terra, a tarde anoitecendo tudo.
A mentira da noite é matar o cansaço dos homens, pensou enquanto fechava os olhos.
O escritor Mia Couto
© Jorge amaral/Global Imagens


in: https://www.publico.pt/2019/03/25/sociedade/noticia/alunos-profissional-vao-via-propria-superior-1866763


Alunos do profissional vão ter via própria para o ensino superior
Exames nacionais deixam de ser decisivos no acesso. Concursos locais vão ser testados como experiência-piloto no próximo ano lectivo.
25 de Março de 2019, 19:55


Foto
NELSON GARRIDO
Os alunos que concluam o ensino secundário através de um curso profissional vão passar a ter uma via própria de acesso ao superior. No próximo ano lectivo será testada uma modalidade de concursos locais através da qual cada candidato concorre directamente à instituição na qual pretende estudar. Esta solução permite acabar com o papel decisivo dos exames nacionais, que afastavam muitos destes estudantes de uma licenciatura.
A medida foi discutida esta segunda-feira no Conselho Coordenador do Ensino Superior e deverá ter uma versão definitiva quanto à forma de implementação até ao final de Abril. O que o Governo propõe, com base nas sugestões de um grupo de trabalho nomeado pelo ministro, é que seja cada uma das universidades e politécnicos a decidir os critérios para acolher os alunos provenientes do ensino profissional numa licenciatura.
Concursos locais
Para isso será usada a modalidade do concurso local, que já é corrente no ensino superior por exemplo no acesso às licenciaturas das áreas artísticas – nesse caso as instituições podem definir pré-requisitos ou provas de aptidão para aceitar um estudante. No caso dos alunos do profissional, esta medida vai ser testada “como um projecto-piloto”, em todas as instituições, “no próximo ano lectivo”, avança ao PÚBLICO o ministro da Ciência e Ensino Superior, Manuel Heitor.
Até agora, estes estudantes tinham que passar, tal como os colegas dos cursos de carácter geral, por exames nacionais que versavam sobre matérias que, em muitas situações, não tinham abordado nas aulas. Este era um entrave no acesso para o qual pais e professores há muito vinham pedindo uma solução. Desde o início da legislatura que esta era uma matéria relativamente à qual o Governo prometia mexidas, mas que nunca se concretizaram até agora.
A solução que está a ser pensada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) “comporta vários riscos”, adverte o presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP), Pedro Dominguinhos, pelo que a sua implementação “precisa de ser falada com as instituições”. “Parece-me arriscado fazer isto em três meses”, sublinha o mesmo responsável.
Entre as preocupações do CCISP estão o possível esvaziamento dos cursos técnicos superiores profissionais para onde tem ido a maior parte dos alunos do ensino profissional que prossegue estudos e a necessidade de se assegurar um tratamento semelhante para universidades e politécnicos.
Além disso, Dominguinhos receia que os alunos do profissional tenham dificuldades na transição para uma licenciatura “que é muitas vezes pensada na óptica dos conhecimentos dos estudantes que vêm dos cursos científico-humanísticos. Por isso, o CCISP defende que, juntamente com o novo modelo de acesso que deverá ser testado no próximo ano, também deveria ser introduzido, na mesma lógica de experiência-piloto, um “ano zero” para receber e preparar os alunos do ensino profissional para uma licenciatura.


Berta Isla - Javier Marías

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