terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

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Teresa Campos
TERESA CAMPOSJORNALISTA

Johannes Ziegler: “Quando se ativa um tablet, desativam-se os outros sentidos”

Foto: Luis Barra
Em entrevista à VISÃO, Johannes Ziegler, diretor do Laboratório de Psicologia Cognitiva da Universidade de Aix-Marseilha, em França, defende que não se pode generalizar os ecrãs na aprendizagem sem a adequada supervisão. "É uma boa ferramenta, mas tem de ser usada com parcimónia"
Foi há um ano que se anunciou uma revolução, mais ou menos silenciosa, nas escolas francesas. Chamou-se-lhe o regresso do bê-á-bá, uma espécie de back to basics, embora, visto mais de perto, se revele um sistema suportado pelas mais recentes inovações científicas. Ultrapassado o tempo do projeto-piloto e alargado o processo a todo o país, Johannes Ziegler, um dos mentores desta nova abordagem da escola francesa, apresentou-nos o modelo que conta como uma mais–valia muito especial: o contributo das neurociências para a escola.
A convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Johannes Ziegler, 52 anos, investigador que cresceu na Alemanha, estudou nos EUA e agora vive em Marselha, no Sul de França – onde é diretor do Laboratório de Psicologia Cognitiva da Universidade de Aix-Marseilha –, veio explicar, antes de mais, porque falha a aprendizagem da leitura. Para aquele orador da conferência Como Aprende o Cérebro? O Papel das Ciências Cognitivas na Educação, realizada em Lisboa, no final de 2019, não se pode esperar mais para se mudar a forma como se ensina esse conhecimento primordial. “Um em cada cinco alunos não aprende a ler no tempo devido, quando a leitura é a coluna vertebral da aprendizagem. Não podemos conformar-nos com isto.”
Depois de experiências em escolas frequentadas pelos mais desfavorecidos, foi fácil confirmar que aqueles que estão menos expostos a estímulos de aprendizagem (sejam livros, concertos, espetáculos…) acabam por ter mais dificuldade em pronunciar corretamente os fonemas da língua – e depois mais ainda a interpretar esses sons e a associá-los a palavras. O problema ganha uma dimensão maior quando nos deparamos com os números: no fim da escolaridade básica, temos 40% dos alunos com dificuldades de compreensão de um texto escrito. “É tremendo, é muita gente! Por isso digo que esperar demais pode comprometer o resto do percurso.” Muitas vezes, alerta ainda, opta-se por medicalizar a questão – mesmo que não haja um diagnóstico de dislexia. Os professores franceses que estão a testar o modelo resistiram ao início, depois confirmaram que ele torna o seu trabalho mais eficiente.
O que o levou a interessar-se por esta questão da leitura e da aprendizagem?
A minha área de investigação é o funcionamento do cérebro e, a dada altura, tornou-se claro que a aprendizagem da leitura era crucial para tudo o que se seguia. Se pensarmos que vivemos em países com poucos recursos (é o caso de França, é o caso de Portugal…) e que a escola continua a ser o que de mais valioso se pode oferecer para se melhorar a vida das pessoas, então este tipo de conhecimento será muito útil. Depois de compreender porque uns aprendem a ler com mais facilidade e outros não, o desafio foi desenvolver um modelo computacional que nos permitisse ultrapassar essas dificuldades.
A proposta inclui o ensino do fonema, que é uma abordagem mais tradicional, a que depois se junta a contribuição das novas tecnologias. Como se conjuga o melhor destes dois mundos?
Digamos que recorro à tecnologia em situações que os professores nunca serão tão bons. Quando se está a aprender a ler, é preciso uma repetição intensiva dos sons, a sua correspondência com as sílabas e depois com as palavras. Sabemos que as crianças não começam todas do mesmo ponto de partida. Têm diferentes origens e hábitos, e isso naturalmente que se reflete. Umas aprendem muito devagar e precisam de muita exposição às letras e ao som que estas fazem quando combinadas. Depois, existem as outras, as que vêm de famílias mais abastadas, em que há livros em casa, ou as que têm irmãos mais velhos, em muitos casos que já sabem ler – e, na escola, acabam por aborrecer-se quando têm de esperar pelos que estão em fases mais atrasadas. Daí que as ferramentas digitais, que são muito moldáveis e adaptativas, possam ser úteis nestes casos. Num programa computacional, há milhares de estímulos visuais e auditivos que lhes podemos providenciar – e sabemos que são precisos os dois: ler é compreender o discurso passado por escrito; ler é ligar o que vemos à linguagem falada. Com a ajuda destes programas, delegamos ao computador a repetição, uma função que ele executa melhor, e aliviamos o professor dessa tarefa, permitindo que se dedique a outras em que ele faz efetivamente a diferença. Quando tem 24 crianças numa sala de aula, o docente ter de repetir os fonemas com cada uma delas e isto em apenas 50 minutos, o que se torna uma tarefa quase impossível. Além disso, o computador consegue dar um feedback mais rápido.
É um método útil a todos os miúdos em idade de aprender a ler ou só em alguns casos?
Trabalhei nos bairros mais desfavorecidos da zona de Marselha, e o que me foi possível observar foi que havia dificuldades por imensas razões: uns porque eram paupérrimos, outros porque nunca faziam qualquer atividade fora da escola. Aquele foi o meu laboratório de experimentação. Claro que não é preciso usar este modelo em todos os casos, mas hoje estou convencido de que os professores gostam efetivamente deste método porque os liberta para as tarefas em que podem fazer a diferença. É o que faz sentido, os recursos são demasiados valiosos para serem desperdiçados.
E como se aplica esta metodologia na sala de aula?
Começámos por dividir a turma em dois: isso permite que uma parte trabalhe com o tablet – de uma forma mais autónoma mas também silenciosa – enquanto o professor dá mais atenção à restante turma, que já se pode centrar em questões mais avançadas de compreensão, aquelas que precisam de interação social.
Isso também permite que cada um avance ao seu ritmo…
Sim, isso é muito importante. Em muitos momentos, não somos bons a lidar com as diferenças e com as características de cada um. Preocupamo-nos demasiado com a média. Só que esta não existe, é uma abstração. Temos de adotar modelos de aprendizagem que também promovam o trabalho de grupo e a interação na sala de aula, de forma a não deixar ninguém de fora. Isto é comum nos modelos finlandeses, mas em França ainda alimentamos muito o antigo sistema, em que um professor tenta ensinar todos os alunos da turma ao mesmo tempo. Isso acaba por ser mau para os bons alunos, que não podem ir muito depressa na sua aprendizagem e que se aborrecem, e mau para os que têm mais dificuldades, porque não conseguem acompanhar de forma alguma.
E a sua recomendação é que se abandone de vez o modelo expositivo?
Bom, é a minha e a de todos os que trabalham nesta área. Hoje, a pedagogia diferenciada e individualizada é consensual, embora seja difícil de aplicar, porque, muitas vezes, os professores não têm as ferramentas adequadas para o fazer. No meu país, pelo menos, eles não têm preparação para isso e é preciso que a tenham, que recebam as descobertas da Ciência, para lidarem de outra forma com as várias dinâmicas que se criam numa sala de aula.
Na sua opinião, o que explica esta resistência em mudar a sala de aula?
Penso que tem muito que ver com a formação dos professores. Temos sempre o exemplo da Finlândia, mas lá o professor é alguém com uma grande reputação, bem pago e com uma profissão muito estável. Tem muitas horas de formação anual e sente-se bem tratado. Em outros sistemas de ensino, isso não acontece, e essa é uma das razões para haver resistência: os professores entram na sala de aula e, em muitos casos, ficam completamente sozinhos, sem apoio algum. Depois, há aquela velha tradição de mandar os docentes mais inexperientes para as zonas mais difíceis, enquanto os mais qualificados ficam com as melhores turmas. E não há maior desigualdade do que esta!
Não somos bons a lidar com as diferenças e com as características de cada um. Temos de adotar modelos de aprendizagem que também promovam o trabalho de grupo e a interação na sala de aula, de forma a não deixar ninguém de fora
Já sabemos que o cérebro é um órgão social e que funciona por estímulos. O que acontece no cérebro quando se aplica o sistema de aprendizagem que propõe?
O que o cérebro faz, em todas as línguas, mesmo em chinês, é associar símbolos visuais à palavra dita. A forma mais direta de o fazer – e, por isso, mais “económica”, ou seja, com menos esforço – é usar as letras e recorrer aos fonemas. A correspondência faz-se mais facilmente a este nível. Muitas vezes há exceções, e os portugueses sabem bem disso, daí que seja preciso o contexto e o recurso a unidades maiores para que a interpretação seja mais correta. Porém, na maioria dos casos, bastam as letras e os fonemas para se fazer a associação mental necessária à leitura, para que se possam associar os milhares de palavras, que já ouvimos antes de aprender a ler, à sua representação escrita. É uma fase da aprendizagem que não exige muito mais do que 20 ou 30 associações. E, depois, a criança pode avançar autonomamente, sem o professor, desfrutando do prazer da leitura.
Defende que o método global de aprendizagem – aquele que parte do contexto para a palavra e depois para as unidades mais pequenas – teve efeitos catastróficos em França. Quer explicar melhor?
Com as crianças mais desfavorecidas, que não têm famílias com hábitos de leitura e que, muitas vezes, nem têm livros em casa, esse método foi muito mau, porque partia do pressuposto de que elas já tinham contacto com as palavras. Só que, sem esse investimento anterior, o método não funciona. O que aconteceu foi que várias crianças não aprenderam a pronunciar as palavras e, depois, como não conheciam muitas, tornou–se quase impossível reconhecer as palavras pelo contexto. Além disso, sem um método que sistematizasse aquela aprendizagem, quem tinha dificuldades conseguia facilmente passar despercebido, atrasando ainda mais qualquer intervenção.
Funciona então em famílias com vivências mais ricas, é isso?
Sim, creio que nesses casos funciona. Mas com esses nós não nos temos de preocupar, pois muitas vezes as crianças já sabem ler quando chegam à escola. A nossa grande preocupação é com aquelas que vivem com todas as dificuldades e que depois ainda têm mais essa. Quando se espera muito tempo, o custo da inação será bem maior. Estes são os alunos que, mais tarde, vão estar desempregados, que muitas vezes desenvolverão problemas psiquiátricos, desde a depressão à esquizofrenia. Está tudo ligado e é demasiado caro para a sociedade. É preciso olhar para estas crianças e apoiá-las desde o início.
É como se investíssemos em estímulos para aprender melhor. À semelhança do doente que, bem–disposto, se cura mais depressa, a Ciência também valida que o aluno que gosta de aprender aprende com mais facilidade?
Sem dúvida. Há muito conhecimento da Psicologia Positiva que aponta nesse sentido. Daí que a motivação e os sentimentos que temos pelas coisas nos ajudem a criar vínculo. Sabemos ainda que isso também pode ser treinado e que não se trata só da parte mecânica: podemos, por exemplo, estabelecer um objetivo que permite, a cada um, identificar o nível em que o aluno começou e a que pretende chegar. E pode estimular esse gosto pela aprendizagem ainda de outra forma, mais inteligente, dando textos mais complexos a quem está mais avançado e uma versão mais simples a quem está mais atrás, permitindo sempre que todos possam debater a mesma ideia.
Não receia que haja resistência a este método por propor o uso de ecrãs? Há muitos medos sobre isso.
Este método propõe o recurso aos tablets em situações e em casos muito específicos. Não acredito nada que se possa generalizar os ecrãs na aprendizagem sem a adequada supervisão. É uma boa ferramenta, mas tem de ser usada com parcimónia: sabemos hoje que, quando se ativa um tablet, desativam-se os outros sentidos. Todos os cuidados são poucos: não é só agarrar no tablet e começar a fazer coisas.

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