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https://brasil.elpais.com/ideas/2020-05-24/ler-em-um-formato-diferente-e-ler-pior.html?fbclid=IwAR2Dp6D0KBctRIQl86bHs3zBd0Gr9DBz29PC-91ZSXMFg1ZxNcWM_MDMxb0
Ler em um formato diferente é ler pior?
O confinamento aumentou ainda mais a digitalização de nossa leitura, que transforma silenciosamente nossos circuitos neurais. Há vantagens em consumir conteúdo em papel em relação ao do celular ou de um e-book?
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O  circuito neural que nos dá a capacidade cerebral para ler está mudando  rapidamente para todos. Tablets, computadores, laptops, Kindles e  celulares estão substituindo os antigos livros, promovendo uma  transformação silenciosa em cada um de nós. O ser humano não nasceu para  ler. A aquisição da alfabetização é uma das conquistas mais importantes  do Homo sapiens. O ato de ler reorganizou completamente um circuito de nosso cérebro.  Mudou a própria estrutura das conexões neurais e isso transformou a  natureza do pensamento humano. Em 6.000 anos, a leitura deu impulso ao  nosso desenvolvimento intelectual. A qualidade de nossa leitura não é  apenas um indicador de nosso pensamento, é a melhor maneira que  conhecemos para desenvolver novos caminhos na evolução cerebral de nossa  espécie. Mas, como mudou a qualidade de nossa atenção à medida que  lemos mais e mais em telas e dispositivos digitais? Este processo vem  sendo reforçado durante o confinamento. Nossa capacidade de percepção  estará, como afirmou o filósofo Josef Pieper, diminuindo ao nos  depararmos com um excesso de estímulos e informações?
Em seu livro O Cérebro no Mundo Digital - Os Desafios da Leitura na Nossa Era  (Editora Contexto), a neurocientista Maryanne Wolf, diretora do Centro  para a Dislexia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, observa  que no cérebro impera uma máxima: "Use essa capacidade ou perca-a".  Assim, cada meio de leitura beneficia alguns processos cognitivos em  detrimento de outros. Wolf lança uma pergunta: a mistura de estímulos  que distraem continuamente nossa atenção e o acesso imediato a várias  fontes de informação dá ao leitor menos incentivo para construir suas  próprias reservas de conhecimento e pensar criticamente por si mesmo?
A plasticidade do nosso cérebro nos permite formar circuitos cada vez mais extensos e sofisticados, dependendo do que lemos e em que plataforma o fazemos.  Como sugeriu o psicólogo cognitivo Keith Stanovich, aqueles que não  leram muito e bem terão menos bases para a inferência, a dedução e o  pensamento analógico, ficando propensos a serem vítimas de informações  falsas ou não comprovadas. Wolf acredita que não vemos mais nem ouvimos  com a mesma qualidade de atenção porque vemos e ouvimos muito e, além  disso, também queremos mais.
Ela mesma vivenciou a mudança. Teve que se esforçar para reler O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse, um dos livros que a marcaram em sua juventude e que lembrava que não era especialmente leve.  Depois de um primeiro fracasso, teve que definir períodos de leitura de  20 minutos para terminar o livro, o que lhe tomou duas semanas. “O  ritmo vertiginoso com que eu costumara ler meus gigabytes diários de  informações não me permitia parar o tempo suficiente para entender o que  Hesse estava transmitindo”, escreve ela em O Cérebro no Mundo Digital.
A  linguista Naomi Baron é, com Wolf, a ponta de lança dessa questão nos  Estados Unidos. Baron comenta que os jovens trocam de mídia 27 vezes por  hora e, em média, consultam o celular entre 150 e 190 vezes por dia.  Por sua plasticidade, afirma o neurocientista argentino Facundo Manes, o  cérebro se adapta às mudanças ambientais e a atenção que dedicamos aos  avanços possíveis graças às novas tecnologias nos faz enfrentar uma nova  maneira de processar informações. O cérebro tem que se adaptar a essas  mudanças, e as crianças e os jovens que estão crescendo entregues às  novas tecnologias possivelmente desenvolvam e potencializem a capacidade  de fazer várias coisas ao mesmo tempo "em detrimento de outras  habilidades”.
Nem todos os especialistas concordam com  essa tese ou acreditam que nossa leitura seja afetada pelo formato  escolhido. A Comissão Europeia quis fomentar o debate, por isso, apoiou  entre 2014 e 2018 (com um milhão de euros no total, cerca de 6 milhões  de reais) o projeto E-Read, que financiou 200 professores universitários  de toda a Europa para estudar o assunto e se reunirem regularmente.  Anne Mangen, do Centro de Leitura da Universidade de Stavanger, na  Noruega, foi uma das coordenadoras do grupo. Vários estudos merecem  destaque nessa experiência, dois deles da própria Mangen: ela comparou o  entendimento impresso e no Kindle de um conto apimentado e de outro de  mistério de 28 páginas (o mais longo estudado até o momento) entre um  grupo de alunos do ensino médio. Concluiu que os alunos que leram o  livro impresso entenderam melhor as duas histórias, principalmente na  hora de ordená-las cronologicamente.
Ladislao Salmerón,  professor de Psicologia Evolutiva e Educação da Universidade de  Valência, foi com seu então estagiário, Pablo Delgado, o autor do estudo  mais relevante da equipe conhecida como Grupo Stavanger. Eles  realizaram um metaestudo de 54 estudos realizados entre 2000 e 2017, com  um total de 170.000 participantes de diferentes idades, que demonstra  que a compreensão de textos expositivos e informativos (não narrativos) é  maior quando são lidos em papel do que em mídia digital, especialmente  se o leitor está com um tempo de leitura limitado.  “O que descobrimos é que, em igualdade de condições, sistematicamente  se entende melhor o que é lido em papel”, diz Salmerón. E o que mais o  surpreendeu: quanto mais jovens as pessoas, maior a diferença de  compreensão entre os dois formatos.
Durante a década passada, houve um importante esforço para aproximar as telas das escolas. O projeto One Toplap per Child,  planejado para reduzir o fosso digital, levou minicomputadores para  crianças do Uruguai a Ruanda. Outros projetos os levaram a Glasgow ou ao  Estado do Kansas. Também na Espanha houve esforços para aproximar a  tecnologia dos pequenos. O Governo da Andaluzia entregou um  minicomputador a 390.000 estudantes. Salmerón, que está em contato com a  comunidade educacional, diz que recebe cada vez mais pedidos para falar  sobre os possíveis efeitos negativos da leitura excessiva nas telas. "A  tecnologia entrou nas escolas levada por esperança e fé", diz Anna  Mangen, "e muita gente tem vergonha de se tornar antiquada vetando a  tecnologia". Ladislao não se esquecer da reação de um alto funcionário  dinamarquês que participou de uma das apresentações do Grupo Stavanger:  "Mas o que fizemos?”.
Um dos assuntos que preocupam os  especialistas em ensino é o efeito que essa nova maneira de ler pode ter  nas universidades. Uma pesquisa realizada por Baron e Mangen com  professores universitários dos Estados Unidos e da Noruega, que será  divulgada no próximo ano, revelou que 40% dos 150 entrevistados pedem  aos alunos menos leituras que antes e um terço deles respondeu que fazia  isso porque diretamente não liam o que lhes pediam que lessem. No  total, 81% afirmaram que em sua opinião a tecnologia digital está  levando os alunos a leituras mais superficiais.
Distintos graus de interesse na Europa
Antes  de decretar o estado de alarme, Salmerón preparava um estudo com cerca  de 100 estudantes universitários para detectar, por meio de um  eletroencefalograma, o nível de atenção durante a leitura em formato  impresso e digital (o financiamento era do BBVA). Atualmente, ele está  computando os resultados de uma pesquisa com 4.000 espanhóis sobre as  mudanças nos hábitos de leitura durante o confinamento. O professor  acredita que, embora o aumento da leitura digital ajude a se chegar a  alunos que, de outra forma, não teriam acesso às leituras em papel, é  urgente encontrar soluções para limitar os efeitos negativos que o  formato digital tem na compreensão da leitura. Ele vê um contraste  importante no interesse por essa questão em relação ao norte da Europa.  Diz que, para fazer um estudo sobre o benefício da leitura nas telas,  encontra inúmeros candidatos. Por outro lado, para estudar seu lado  negativo, é difícil encontrar participantes e patrocinadores. Cita André  Schueller-Zwierlein, responsável pela biblioteca da Universidade de  Regensburg (Alemanha), por seu esforço na promoção da leitura profunda.  Schueller-Zwierlein considera que as bibliotecas têm a responsabilidade  de criar salas diferentes para diferentes tipos de leitura (em sua  biblioteca há 13 salas diferentes) e promover o ensino das habilidades  de leitura.
Há pouco mais de um ano, o Grupo Stavanger  divulgou uma declaração resumindo os resultados obtidos pelos  pesquisadores participantes. Um dos responsáveis pela redação, Paul  van den Broek, especialista holandês e membro do grupo de profissionais  que prepara o relatório PISA,  destaca que não se opõe à leitura digital, mas ressalta que cada  formato tem um público para o qual é adequado e que o assunto precisa  ser aprofundado. A declaração defende a relevância do texto impresso  para a leitura de textos longos, especialmente quando se trata de  compreender em profundidade e reter informações.
Dentre  as recomendações incluídas, três se destacam: 1) ampliar a pesquisa  sobre as condições em que o aprendizado e a compreensão em textos  impressos e digitais aumentam ou diminuem, 2) o ensino aos estudantes de  estratégias de domínio da leitura em profundidade no ambiente digital e  que as instituições educacionais motivem os alunos a ler livros  impressos em sua grade curricular e 3) que os professores estejam  cientes de que intercambiar o aprendido mediante papel e lápis não é  indiferente à mudança para o digital.
Ler nem sempre é  divertido. Implica esforço, diz Anna Mangen. “Devemos pedir evidências  de que a leitura digital melhora a leitura”, diz a especialista  norueguesa, que enfatiza: “É importante, pois é uma questão de saúde  mental”. Como disse o visionário tecnológico Edward Tenner, seria uma  pena se uma tecnologia tão genial acabasse ameaçando o tipo de intelecto  que a tornou possível.
PARA QUE OU PARA QUEM É MELHOR, ESSA É A PERGUNTA, POR FACUNDO MANES (NEUROCIENTISTA E DOUTOR POR CAMBRIDGE)
A  leitura supõe, em primeira instância, reconhecer o formato das letras  e, com elas, as palavras. Mas também, durante a leitura, percebemos a  totalidade do texto como se fosse uma paisagem. Assim, fazemos uma  representação mental dele, que serve de base para a interpretação das  informações que estamos processando. Na neurociência, não há consenso  sobre qual é o formato mais adequado para a leitura. Muitos estudos mostram as vantagens do papel, enquanto outros apontam  que não há diferença alguma entre os dois formatos ou mostram as  vantagens do formato digital. A pergunta importante não é qual formato é  melhor, mas para quem, para quê, e quando. É o mesmo para um adulto e  uma criança? É melhor para leituras escolares, mas pior para leituras  recreativas? Existem vantagens que justifiquem o uso de um formato  específico para textos de ficção, mas não para os técnicos?  Uma das mudanças estruturais que ocorre na leitura digital é que nela a  experiência do limite não se dá de maneira tão acabada como na leitura  no papel: quando lemos na tela vemos apenas uma parte do livro, podemos  avançar ou voltar ao longo do texto, mas essa noção de finitude não é  tão clara. É por isso que a metáfora da "navegação" usada para se  referir à Internet não é aleatória, já que não há caminho predeterminado  e também não se sabe onde está a margem. Um livro tradicional, por sua  vez, oferece ao leitor traços topográficos que lhe permitem se orientar  sem perder de vista o conjunto: a página à esquerda, a página à direita,  os quatro cantos e um texto fluido que não é interrompido por links ou  anúncios.  A isto se soma a possibilidade de tocar as páginas com as mãos e deixar  um rastro à medida que se avança na leitura, o que nos propicia um  informe sensorial-motor de quanto lemos e quanto falta.  Todos esses elementos fazem com que muitas pessoas percebam a leitura no  papel como algo mais controlável, pois lhes oferece um mapa mental  coerente e sem nenhum obstáculo. Por sua vez, a orientação espacial tem  um impacto na memória: muitas pessoas dizem que é mais fácil recordar o  que leem quando lembram onde as informações estavam situadas. A  interação com o texto é diferente em cada plataforma, já que esta se  encontra relativamente bloqueada (por exemplo, em um formato sem  possibilidade de edição) ou tem uma capacidade de inserção sem marcas de  limite entre o alheio e o próprio (por exemplo, em um texto de  processador). Escrever nas margens, sublinhar, destacar e voltar para trás para reler  uma frase é algo mais vinculado ao livro em papel. Esse senso de  apropriação do texto a partir dos traços originais torna o livro um  pouco mais próximo. Embora talvez seja pelo fato de a pessoa ter sempre  lido nesse formato. É importante entender que a compreensão da leitura é  um processo posterior à decodificação: primeiro se lê e depois se  compreende o que é lido. Sabemos que, para um leitor, ler em uma tela  não é o mesmo que ler um livro. Faltam mais pesquisas que avaliem o  efeito do uso da tecnologia no funcionamento cognitivo a longo prazo.  Enquanto isso, o segredo estaria em usar a tecnologia de maneira  equilibrada e saudável. 














