terça-feira, 19 de março de 2019

"TODOS A LER"

B ESLA

No dia 20 de Março todos os alunos da ESLA leram/ouviram um poema.


O meu país sabe às amoras bravasno verão.    
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


 Lágrima de preta


Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

               António Gedeão


"Ter um amigo é um tesouro sem preço, um gostar sem distância,
de alguém presente em nosso caminho, nas horas de dúvida, de alegria,
demais para ser perdido, importante para ser esquecido..."





As pessoas crescidas têm sempre necessidade de explicações... Nunca compreendem nada sozinhas e é fatigante para as crianças estarem sempre a dar explicações.



Os homens compram tudo pronto nas lojas... Mas como não há lojas de amigos, os homens não têm amigos.




Os putos

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

Uma fisga que atira a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser criança
Contra a força dum chui, que é bruto.

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.

As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola
Um pião na algibeira sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa a dor.

                     José Carlos Ary dos Santos

Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal...


Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"


E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
Sem álamos,
Sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.
  
Eugénio de Andrade


Quem me dera que eu fosse o pó da estrada (Alberto Caeiro);
Não tenho pressa (Alberto Caeiro);
Liberdade (Fernando Pessoa);
À luz da lua (António Nobre);
Espero (Sophia de Mello Breyner);
Porque (Sophia de Mello Breyner);
Ode à Paz (Natália Correia);
Não:devagar (Álvaro de Campos);
Às vezes tenho ideias felizes (Álvaro de Campos);
A boca (Eugénio de Andrade);
É urgente o amor (Eugénio de Andrade);
A demora (Mia Couto);
Igual-Desigual (Carlos Drummond de Andrade);
Poema do Futuro (António Gedeão);
Ser poeta (Florbela Espanca)
Pequeno poema (Sebastião da Gama)
Amor é fogo que arde(Luís de Camões)
Os putos (José Carlos Ary dos Santos)
Ter um amigo é um tesouro (Antoine Exupéry)
Pedra filosofal (António Gedeão)
Poema à mãe (Eugénio de Andrade)
Sem ti (Eugénio de Andrade)
As amoras (Eugénio de Andrade)
Quási (Eugénio de Andrade)
Lágrima preta (António Gedeão)
Equipa da Biblioteca

Estrada
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XVIII"
Heterónimo de Fernando Pessoa

  

Não Tenho Pressa
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

  
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

  

À Luz da Lua!
Iamos sós pela floresta amiga,
Onde em perfumes o luar se evola,
Olhando os céus, modesta rapariga!
Como as crianças ao sair da escola.

Em teus olhos dormentes de fadiga,
Meio cerrados como o olhar da rola,
Eu ia lendo essa ballada antiga
D'uns noivos mortos ao cingir da estola...

A Lua-a-Branca, que é tua avozinha,
Cobria com os seus os teus cabellos
E dava-te um aspeto de velhinha!

Que linda eras, o luar que o diga!
E eu compondo estes versos, tu a lel-os,
E ambos scismando na floresta amiga...

António Nobre, in 'Só'
  

Espero

Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

Sophia de Mello b. Andresen obra poética I



Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
               Sophia de Mello Breyner Andresen



Ode à Paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!
Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"


Não: Devagar
Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
  
Às vezes tenho ideias felizes,
Às vezes tenho ideias, felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despejam...
Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
18-12-1934
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.


  
A boca
A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?

  Eugénio de Andrade

  
Urgentemente
É urgente o amor
É urgente um barco no mar

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã"

A Demora
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.


Mia Couto, in " idades cidades divindades"

  

Igual-Desigual
Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
                                                                                 [coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho
ímpar
.

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida'


  

Poema do Futuro
Conscientemente escrevo e, consciente,
medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exhumado
da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.


António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'




Ser Poeta 
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendos
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

(Florbela Espanca, «Charneca em Flor», in «Poesia Completa»)


Pequeno Poema
Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

Sebastião da Gama, in 'Antologia Poética'




segunda-feira, 18 de março de 2019

in: https://imagens.publicocdn.com/imagens.aspx/1269863?tp=UH&db=IMAGENS&type=PNG&w=188&h=188&act=cropResize


Damasco
Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

19 de Abril de 2017, 7:39

Voltei ao meu escritório, ao meu castelo, ao meu reino privativo, onde costumo fazer reuniões secretas comigo mesmo, preparatórias de um movimento de massas utópicas que abram caminho à liberdade de se poder perguntar aos portugueses se preferem um rei-presidente a um presidente-rei, um símbolo aglutinador mais forte do que o galo de Barcelos e do que a selecção nacional de futebol, e mais permanente. Não ouvindo, lá de fora, mesmo girando cumplicemente o pescoço, qualquer sinal de uma vaga de fundo reivindicadora dessa auscultação à vontade popular, em aprovação, mas também nenhum eco de um possível ataque de tosse convulsiva por engasgamento dos mais afoitos deputados da nação, em desaprovação, deixo-me estar a gozar a graça de estar sem ir, agora que as âncoras lançadas ao mar neste porto de abrigo se encontram bem fincadas ao primordial rochedo subjacente à minha nau, também ela – muito fidedignamente – de pedra, mas talhada.
Depois da digressão, é boa a sensação de estar sentado no velho cadeirão sem que a sala se mova nem haja comunicações sonoras a cada quarto de hora sobre a necessidade de conservar os cintos apertados, a localização das saídas de emergência, o sobressalto de uma zona de turbulência, a oportunidade de comprar perfumes a preços especiais ou o que fazer no caso de nos cair um escorpião na cabeça ou de nos proporem que cedamos o nosso lugar à companhia de aviação para que possam viajar funcionários seus em lua-de-mel. É bom saber que nada se vai mover, que as paisagens que se vêem da janela não vão mudar, que não teremos de estar dez horas entalados entre uma senhora idosa simpática e uma senhora jovem antipática e que não virá ninguém, quando estivermos a dormir, agarrar-nos pelas pernas e arrastar-nos pelo corredor até à parte da frente do avião para arranjar lugares para o pessoal da companhia aérea, mesmo quando já sobrevoamos o Atlântico. Segurança – não há preço (mesmo em dólares)! Ou por outra, no mundo real presente: mesmo em dólares, não há segurança, seja a que preço for...
Passo um pouco pelas brasas para recuperar das diferenças horárias entre partidas e chegadas e do cansaço das falsas partidas e das falsas chegadas, e acordo pronto a dar os retoques finais ao meu escritório que é o meu centro de trabalho, onde ganho a vida a escrever, tal como o Churchill – não, jovens leitores, não me refiro ao nome do buldogue dos vizinhos do 9.º andar direito, mas ao de um ex-primeiro-ministro inglês que, entre outras realizações, inspirou o grupo de jazz-rock norte-americano Blood, Sweat & Tears, que ainda existe (o Churchill já não, o que nos faz pensar no sentido da vida). Prontas as estantes da minha biblioteca, como sabem os que costumam ler estas crónicas, falta tratar as janelas e as portas de vidro, e mal sabia eu que a decisão de contratar um especialista nestas coisas me iria conduzir a uma nova viagem.
Recebi a técnica decoradora no local do crime que eu tentava evitar que fosse cometido. Quando lhe pedi conselho sobre “umas coisas” que servissem de barreira à insolação das lombadas dos meus livros, notei que reprimiu, com um esgar momentâneo, um sorriso reprovador da minha ignorância na matéria, e começou a defender as suas damas cortinas, os seus (delas) paladinos reposteiros e, de passagem, a aspergir-me com nomes de cores e materiais sonantes e inspiradores. Depois, estragou tudo ao dizer-me que queria descobrir quais os materiais que iam “de encontro ao meu estilo”. Não sei se lhe perdoei menos o querer vender-me coisas contra o meu estilo ou o não ler as minhas crónicas. Expliquei-lhe que preferia coisas que fossem “ao encontro do meu estilo”. Não percebeu a diferença, mas prometeu-me um desconto. E concluiu que do que eu precisava era de damasco.
Palavra curiosa
Caravançarai
Não será fácil encontrar maior curiosidade do que esta: caravançarai. Remete para uma realidade antiga de séculos, contemporânea da Rota da Seda, uma rede de circuitos de comercialização assente em caravanas de camelos para levar, por terra, produtos de luxo a milhares de quilómetros dos seus lugares de produção, aproveitando o motor inicial da seda. Para cobrir tais distâncias, numa era anterior à motorização dos veículos, era indispensável assegurar pontos de paragem e descanso tanto para homens como para animais. Cada uma dessas estruturas de apoio, dessas estalagens, era um caravançarai, caravançará ou caravancerá, formas que derivam do persa “karawansarai”, palácio das caravanas. Além dos leitores de romances, historiografia ou arqueologia do Médio Oriente, também os que seguem a carreira do guitarrista norte-americano Carlos Santana poderão conhecer a palavra, já que deu o nome a um dos seus álbuns: “Caravanserai”. E já que estamos a falar de música, impõe-se uma associação de ideias: da última parte de “karawansarai”, ou seja, “sarai”, que quer dizer palácio, temos a palavra “serralho”, que, além de residência do Sultão da Turquia, também veio a significar a parte de um palácio reservado às mulheres, que conhecemos melhor por harém (do árabe “haram”, proibido, sagrado), o conjunto das odaliscas que compõem o serralho. Os melómanos sabem que Mozart compôs uma ópera que nos familiarizou com esta palavra: “O Rapto do Serralho” (1782).
Eu contrapuz com veludo e mandei chamar a minha mulher, para dar uma opinião sobre o assunto, contanto que me apoiasse. Em breve entrava, sorrateira como só ela sabe ser, a nossa governanta, Zulmira, anunciando que a sua senhora, que por coincidência é minha mulher (o que era bom, porque evitava mais confusões), não se encontrava no castelo, recordando-me que, por aquela altura, estaria a dar uma conferência em Foz de Iguaçu, do lado direito das cataratas, para quem sobe.
Para não dar parte de fraco, respondi: “É claro!”, que é o que se responde quando não se tem nenhuma ideia sobre o que se há-de dizer. Na verdade, a minha mulher dá tantas conferências, participa em tantos seminários, viaja para tantos congressos, tem tantas reuniões, escreve tantos artigos científicos que chego a esquecer-me de que sou casado. Isto é aborrecido porque já aconteceu de nos encontrarmos fortuitamente num corredor a meio da noite e ela começar a gritar por socorro a pensar que eu era um ladrão e eu a correr atrás dela para tentar saber quem era aquela bela mulher a gritar na minha casa, por que tinha fugido de mim e por que se tinha encerrado num quarto tão parecido com o meu. Para tentar convencê-la a abrir a porta, só me ocorreu recitar uma quadra do poeta António Aleixo:
“Sei que pareço um ladrão,
Mas há outros que eu conheço
Que, sem parecerem que o são,
São aquilo que eu pareço.”
A grandiosidade do poeta funcionou mais uma vez, a porta abriu-se e, quando eu me preparava para perguntar àquele ser radioso se me dava a honra de ser minha mulher, ela pareceu reconhecer-me e saudou-me assim: “Ah, afinal, és tu? Pensava que era outra pessoa, o Viriato de Viseu, o chefe dos lusitanos no tempo dos romanos, sei lá... Que grande susto! Também quem te manda deixar crescer essas barbas sem me dizeres nada?...” Fiquei confundido. Viriato, eu?!... Mas ele tinha barbas? Como é que se vai saber, se não havia fotografias e não era fácil encontrar um pintor de retratos nas montanhas onde ele se refugiava?...
Regressei à realidade (fosse ela qual fosse) e pedi à decoradora que voltasse no dia seguinte para uma reunião comigo e que me trouxesse o maior número de amostras de tecidos que pudesse, mesmo os que não são utilizados em decoração, mas que tenham um lugar próprio na história dos têxteis e dos símbolos. “Confie em mim: pode não dar para um artigo científico, é duvidoso que dê para uma conferência, mas é com muitos desses nomes que se tecem sonhos. Esta noite vou investigar as palavras e amanhã fá-las-emos corresponder às amostras dos tecidos reais que nos vai trazer. Vá, não me falhe!...” E apontei, teatralmente, com o braço esticado prolongado por um indicador não menos hirto nem menos afirmativo, para o exterior, para o universo onde ela buscaria retalhos de tecidos que têm nomes de plantas, de animais, de lugares que dão para alimentar a nossa natureza simbólica, nossa, das pessoas, fazendo recordar momentos de vida, sonhos nunca vividos, lugares nunca visitados, quanto mais misteriosos, melhor. A jovem – pois quem, não sendo jovem, se disponibilizaria para uma expedição destas?... – entreabriu as portas de vidro que davam para fora, parou, olhou para trás e fez um gesto largo de despedida com a mão que poderia muito bem sair de “E Tudo o Vento Levou”.
Fiquei a pensar no damasco de Damasco, de que hoje só se fala por guerra, destruição, morte e refugiados, mas que, até há poucos anos, associaríamos à delicadeza de um fruto, ao luxo de um tecido de seda ou à intrigante conversão de Paulo de Tarso, perseguidor de cristãos, no seguidor de Cristo a quem chamam S. Paulo, que se diz que ocorreu na estrada de Damasco. Aguardando o tempo em que voltem àquela terra as riquezas da paz e da hospitalidade, encontro esta descrição: “Damasco – Tecido de seda com desenhos acetinados em fundo não brilhante. // Estofo de lã, linho ou algodão imitando o damasco de seda. // Tipo de tecido que, pela sua composição de efeito de fundo e efeito de desenho, constituído pela face teia e pela face trama de um mesmo ponto, tem a particularidade de ser reversível, apresentando numa das faces o fundo opaco e os motivos brilhantes e na outra o fundo brilhante e os motivos opacos. // Técnica de produção de tecido.”(1)
Está certo, evidentemente, mas acrescento o que a palavra contém – como muitas outras – de dificilmente transmissível, de simbólico, dos significados imaginários adquiridos no momento em que foi pela primeira vez ouvida ou lida e que nunca mais passaram. Nem quero que passem.
(1) “Glossário de Termos Têxteis”, de Manuela Pinto da Costa, in Revista da Faculdade de Letras “Ciências e Técnicas do Património”, Porto, 2004, consultado através do endereço na Internet http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4088.pdf .
Correio Premente
De Adalberto Pancadas, lugar de Tornaleites, freguesia de Espinhal, concelho de Penela: “Acho-lhe piada. O que quer? Cada tolo com a sua mania. Mas agora que me aposentei da minha carreira de técnico oficial de contas, a minha psiquiatra aconselhou-me a distrair-me o mais possível de 38 anos a olhar para números e desde que descobri as suas crónicas tenho melhorado e já consigo mesmo sair à rua para ir ao café ou ao supermercado. Acontece que no meu livro da quarta classe de 1962 havia um poema chamado 'Vozes dos animais', da autoria de já não sei quem era, mas que me impressionou a pontos de me vir à cabeça a cada passo, principalmente – e isto é que é curioso – quando vejo transmissões de debates da Assembleia da República ou intervenções de certos comentadores políticos, comentadores-políticos, políticos-comentadores e ex-políticos comentadores. Não sei onde pus o raio do livro, mas o meu neto localizou-me o poema num instante na Internet – esta juventude é danada. Como penso que não conhecerá o tal poema, quer porque desapareceu dos manuais escolares, quer porque não o tenho encontrado em nenhuma colectânea de poesia contemporânea, aqui o envio para ver se os seus leitores reconhecem algumas semelhanças com as vozes que nos entram em casa pela janela da televisão sem dizer ‘água vai!’:
‘Vozes dos Animais’
De Pedro Dinis.
Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha
Os ternos pombos arrulham
Geme a rola inocentinha
Muge a vaca, berra o touro
Grasna a rã, ruge o leão,
O gato mia, uiva o lobo
Também uiva e ladra o cão.
Relincha o nobre cavalo,
Os elefantes dão urros,
A tímida ovelha bala,
Zurrar é próprio dos burros.
Regouga a sagaz raposa,
Brutinho muito matreiro;
Nos ramos cantam as aves,
Mas pia o mocho agoureiro.
Sabem as aves ligeiras
O canto seu variar:
Fazem gorjeios às vezes,
Às vezes põem-se a chilrar.
O pardal, daninho aos campos,
Não aprendeu a cantar;
Como os ratos e as doninhas
Apenas sabe chiar.
O negro corvo crocita,
Zune o mosquito enfadonho,
A serpente no deserto
Solta assobio medonho.
Chia a lebre, grasna o pato,
Ouvem-se os porcos grunhir,
Libando o suco das flores,
Costuma a abelha zumbir.
Bramam os tigres, as onças,
Pia, pia o pintainho,
Cucurica e canta o galo,
Late e gane o cachorrinho.
A vitelinha dá berros
O cordeirinho balidos,
O macaquinho dá guinchos,
A criancinha vagidos.
A fala foi dada ao homem,
Rei dos outros animais:
Nos versos lidos acima
Se encontra em pobre rima
As vozes dos principais.”
Muito obrigado pela sua atenção, caro leitor. Boa convalescença. Os meus colegas também me pedem para lhe agradecer, já que ficaram com a redacção do noticiário político, social e desportivo muito mais facilitada.


in: https://www.publico.pt/2019/03/15/p3/video/clima-se-fosses-tu-a-mandar-o-que-e-que-mudavas-20190315-171557


in: https://www.publico.pt/2019/03/12/p3/video/the-end-of-meat-um-documentario-para-mostrar-que-o-futuro-da-carne-e-historia-20190312-142501

The End of Meat: um documentário para mostrar que “o futuro da carne é história”

E se parássemos de comer carne? The End of Meat, um documentário realizado por Marc Pierschel, mostra uma visão optimista de um mundo em que “o futuro da carne é história”. Durante uma hora e meia, o filme expõe a perspectiva de activistas, advogados, académicos e cientistas de todo o mundo e tenta revelar "o impacto escondido do consumo de carne, explorar as oportunidades e benefícios de uma mudança para uma dieta mais ‘solidária’ e levantar questões críticas sobre o papel futuro dos animais na nossa sociedade”, lê-se no site. Está desde terça-feira disponível para compra ou aluguer no Vimeo e no iTunes
“Em vez de me focar nas consequências negativas do consumo de carne, quis mostrar as enormes possibilidades benéficas de um mundo pós-carne e como isso seria para os humanos, animais e planeta”, disse o realizador alemão ao portal Plant Based News. Para isso, encontrou-se com a famosa Esther, a porca-maravilha, e com pioneiros do movimento vegan na Alemanha; visitou Palitana, a primeira cidade vegetariana na Índia, e observou métodos inovadores para produzir carne e queijo sem recurso a animais. Porque apesar das "evidências do impacto negativo do consumo de carne no planeta e na saúde", continua a existir "um caso amoroso entre as pessoas e os hambúrgueres, bifes, nuggets e nacos de carne". E este documentário quer provocar um divórcio.
in: https://www.publico.pt/2019/03/16/p3/cronica/ougado-1865417


PALAVRA DE AURÉLIO
Ougado
Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa.
Aurélio Moreira

16 de Março de 2019, 9:06
    
De fonte tão segura como amável me chegaram ecos de haver sido recebida com atributo de alguma graça, em certas porções dos territórios por onde a nossa língua vai resistindo às investidas do bárbaro rico, um ou dois dos exemplos tratados na crónica anterior. Sendo assim, prossigo, já que a satisfação de alguma alma, se bem que momentânea e mesmo que incógnita e longínqua, é a maior paga que já tenho recebido deste ofício de entremear palavras com histórias ou, se quiserem, até com historietas, mas nunca com “estórias”, que é bicho que não como, mixórdia que não bebo, bordão que não uso, por desnecessidade e objecção de consciência.
Passemos então ao que nos traz cá, antes que um “tlim”, um “fiu”, um “bóri-bóri”, um “tara-rá” — ou seja lá qual for o ruído indicador da recepção de uma mensagem ou de uma “notificação” do sistema, programa ou aplicação que os chama ao culto do grupo fechado em circuito aberto — os afaste de mim e da minha prédica, esquecendo, ingratamente, que mais doce não se pode esta fazer, e não se faz, cá ou no estrangeiro.
Começo com arreigar, esse verbo medianamente circulante, que serve para descrever aquele que se prende à casa, à família, aos amigos, ao bairro, à cidade, ao país, à tradição, e dali não arreda pé, haja inundações ou secas, tal como a árvore forte que fica incólume à passagem da enxurrada. Mas dá-se o caso de arreigar ter parentesco com raiz – o que se conclui mais facilmente se soubermos que deriva do latim arradicare, que, por sua vez, vem de radicare, que significa lançar raízes – surgindo bem visível nas nossas palavras radicar (criar raízes; enraizar; arreigar) e radical (do latim radicale, da raiz). E tudo isto reforçando a ideia que já temos de que a ideia de raiz comunga da ideia de origem. Ora, voltando ao ponto de partida arradicare e ao ponto de chegada arreigar, não é muito difícil imaginar que pode faltar aqui um elo de ligação que nos possa explicar por que (razão) o “arra” passou a “arre”. E falta. Felizmente, no castelo em que eu moro, promovo a realização de escavações arqueológicas. De uma delas, desenterrámos um esqueleto quase petrificado que, depois de pincelado, escovado e lavado, se revelou ser do verbo arraigar, o tal elo de ligação em falta. Arraigar, sim, tem a vantagem de mostrar a correspondência quase total com arradicare, pelo menos no que diz respeito às primeiras sílabas da palavra, já que as médias foram sacrificadas à falta de ouvido musical dos povos nossos ancestrais, ao tempo em que conviveram com os invasores falantes de latim. Mas se arraigar tem a vantagem que comentávamos, tem a desvantagem de exigir uma ginástica articulatória muito em desconformidade com os dotes populares indígenas respectivos. E foi assim, mais ou menos assim, que arraigar foi arredondado lentamente, ano após ano (mais rapidamente nos bissextos), para arreigar.

Mais saboroso ainda é o caso de ougado. Ougado remete para o fenómeno rural do simplório que come com os olhos à falta de meios para ter à sua mesa o que por vezes descobre na dos outros. Ou daquele desgraçado que, em se preparando para comer uma atraente talhada de melancia, no Verão, ou uma colherada de papas de sarrabulho, no Inverno, lhe vê ser arrancado do espaço útil do abocanhar o objecto do abocanhamento tido como certo, quer por besta, quer por humano, quer por um composto dos dois que ainda transita muito por aí, e não só no confinamento das áreas rurais.
Não se pense que é coisa pouca (o acto de morder em seco), pois as sequelas (e não estou a falar de longas-metragens com continuação) daí advenientes podem ser múltiplas, maiores e multidisciplinares, para cá não faltar palavra tão em uso na academia e na política. Basta lembrar o sinal exterior mais conhecido do ougado: o cabelo arrepiado, para se concluir como hoje em dia as cidades estão tão pejadas de sofredores dessa doença que nem o gel nem o cabeleireiro a conseguem esconder. Tal como o monstro do Dr. Frankenstein, do livro de Mary Shelley, que seria ougado de vida, os exemplos abundam, selectivamente paradigmáticos segundo o seu público-alvo: o Herrera do F.C. Porto “pré-overhauling”, o violinista Nigel Kennedy, o mitológico Tântalo supliciado, cada um, à sua maneira, é simbólico do desafortunado que bem cedo na vido começou a receber lições de como conjugar frustrações regular e irregularmente.
– Deve ser muito bom, enguias de escabeche!...
– Como sabes, filho? Já comeste?...
– Não, senhora. Vi comer...
Palavra curiosa
Varanda
Parece não ser palavra extraordinária, mas as suas origens são interessantes. É verdade que vários dicionários e até o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, não passam da frustrante indicação “de origem obscura”, mas no Hobson-Jobson The Anglo-Indian Dictionary, de Henry Yule e A. C. Burnell, encontramos as pistas do sânscrito moderno baranda, do bengali baranda ou do hindi varanda, que nos empurram numa direcção, para logo depois, os citados autores acharem estranho que tanto portugueses e espanhóis pudessem ter usado o vocábulo tão cedo e tão correntemente como no Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, de 1498, ou no Vocabulário Hispano-Árabe de Pedro de Alcala, de 1505, defendendo que a palavra já tinha existência em Espanha e Portugal e que terão sido os portugueses a levá-la para a Índia em vez de a terem trazido de lá, introduzindo-a, portanto, no hindi e no bengali. E, a partir da Índia, também no inglês. A propósito do uso da palavra em inglês, socorro-me do saboroso filme de 1949 Adam’s Rib (A Costela de Adão), de George Cukor, em que o actor David Wayne canta a Katharine Hepburn a canção Farewell Amanda, em cujos versos Cole Porter fez rimar Amanda com veranda. Vale muito a pena conferir, vendo o filme do princípio ao fim.
E passaram-se tantas vidas sem chegar a comer... Mas isso era antigamente, quando tudo era caríssimo e raro e distante. Hoje não há ougados, ou estão todos escondidos atrás das fragas delimitadoras do país atrasado imaginado pelos citadinos. Ou estão presos. Ou estão no Governo ou nas autarquias ou nos lugares de nomeação política da administração pública. Ou nos “reality shows”, que são espectáculos de realidade aumentada e formação diminuída, de um realismo chocante, quando não de sobre-realismo.
Antigamente, era um problema. Se uma criança não tinha apetite, excluindo-se a espinhela caída, o mau-olhado, as bichas, ou ter de resolver problemas de aritmética da escola primária em decímetros cúbicos de água necessários para encher uma banheira furada, podia dar-se o caso de estar ougada. Tinha de chamar-se a casa pessoa sabedora da receita ancestral: com a massa sobrante da fornada de broa, fazer uma rodela chata com um dedo de altura, se tanto, que a criança recebedora marcava com a ponta do seu dedo indicador. Indo a cozer e tirado do forno, deveria o ougado comer esse bolo ainda morno, atrás de uma porta que dê para dentro, até se saciar. Sobrando alguma parte, não pode esta deitar-se fora: só a podem comer as galinhas. Se tudo assim for feito, dois ou três dias depois recupera o ougado o seu apetite. Se não, óleo de fígado de bacalhau.
Mas que palavra vem a ser ougado? Bem, mais não é do que a corruptela de aguado, que se refere à água que cresce na boca de todo aquele que já esteve perante uma visão de um objecto cobiçado, normalmente um petisco real ou idealizado, mas não obrigatoriamente. É capacidade notável do homem — e mulheres também, não desfazendo — criar simbologias de tal modo elaboradas que chega a não as distinguir das realidades a partir das quais as projectou ou às quais, em espírito, as associou. Não esteve mal aquela pessoa que falou, em escritos, de um fingidor de tal sorte que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia. É por isso que, diante de um trompetista prestes a entrar em palco, é proibido mencionar a palavra limão, pois o acréscimo de água na boca em reacção à sugestão ácida, arruinar-lhe-ia a prestação instrumental. Não se faça!
Voltando à vaca fria: como se passa de aguado para ougado? Bem, fechando os ouvidos à melodia e elegendo como instrumento favorito o pesado bombo de festa, em cujas peles agredidas por grossas baquetas poderemos figurar os nosso tímpanos, enquanto se aceitam apostas sobre quais irão primeiro rebentar. Mas que é verdade que as palavras dão essas voltas sofrendo tratos de polé, sei-o eu de ouvir, em pequeno, as pessoas mais velhas dizerem todas “auga” em vez de água, bons alunos que eram da escola oral que veio pela Galiza abaixo, fazendo a nossa língua. Ora, de “auga”, “augado”. Mais fácil de dizer: ougado.
Correio Premente
De Azul Marinho e Tinto, lugar de Portela de Nexebra, freguesia de Alviobeira, concelho de Tomar: “Em todas as crónicas que escreveu até agora, que fiz questão de ler devagar, para melhor o apanhar em falso, nem uma só vez se referiu a um animal de estimação. Ora, eu nunca confiei em três tipos de pessoas: em quem não bebe, em quem não gosta de futebol e em quem não tem um animal de estimação. E não me tenho dado mal: tenho casa própria, tenho uma casa alugada a um banco, tenho um Audi, um jipe, uma moto de água e um realejo. E uma reforma jeitozinha do Parlamento Europeu. Por isso, apesar de tantas palavras que me deu, não confio em si. Não leve a mal, que eu também não levo.”
Não levo, não. Já tenho muitos anos disto. Sendo que, com “disto” tanto quero dizer anos de tarimba jornalística, de convívio com colegas e mestres com quem muito aprendi, de lidar com processos tecnológicos complexos na sua simplicidade, outros simples na sua mediocridade, como de aturar malucos, que são uma espécie de moscas atraídas pelo mel da tinta tipográfica. Por isso, é com algum receio que contemplo a hipótese de ter de corrigi-lo. Ao longo desta torrente de escrita que tem sido todo este projecto a que estou preso como lampreia a vidro de aquário, referi-me algumas vezes, de passagem, a animais, alguns dos quais ferozes, outros empalhados, e a dois em especial que quis que permanecessem incógnitos: o casal de crocodilos que habita o fosso que circunda o meu castelo, a Dinamene e o Lullabye, que o tratador tratava carinhosamente por “Dilma meme” e “Lula Vai!” e com quem tirava auto-retratos a escancarar-lhes as mandíbulas, para enviar à família (dele, tratador), até um deles (crocodilos), com a cumplicidade do outro, lhe ter arrancado o braço até ao antebraço. Agora, interpôs uma acção cível exigindo-me uma indemnização de três milhões de euros. A vida é bela.


Berta Isla - Javier Marías

CAMÕES

 V CENTENÁRIO DE CAMÕES! CAMÕES, ENGENHO E ARTE! Participa...